Sai inspiração. Entra piração

 


Sai inspiração. Entra piração

Solange Amado

O professor entra na sala de aula e pergunta:

“Joãozinho, como se fala gaveta em francês?”

Joãozinho responde rápido:

“Gavetá, professor!”

“Não, Joãozinho. TIROIR!”

“Gavet, professor!”

O professor já desesperado:

“Não, Joãozinho! TIROIR!”

E o Joãozinho numa derradeira tentativa:

“Gvet, fessor!”

“TIROIR” grita o professor já nas últimas.

“Mas, fessô, não tem mais A pra tirar!

Pois é, a piadinha é infame e todo mundo conhece, mas é exatamente o que acontece comigo nesses últimos tempos. Por mais que eu abra a minha gaveta, não encontro nenhuma inspiração. Mesmo que eu tire todos os AS não encontro nada. Por mais que eu inspire e expire, não encontro nadica do estrupício da inspiração.

Em desespero, o papel branco da exigência na minha frente, pergunto à Alexa: “Já estou nas últimas, o que faço?” Infelizmente, Alexa está sem o seu aparelho de ouvido, e me sugere iniciar uma obra assistencial como distribuir sopa para os pobres. Costuma dar certo. Às vezes a gente encontra o caminho das pedras.

“Meu Deus, Alexa, não é desesperação, é inspiração!” E ela me responde cruelmente: “não tenho nenhuma resposta para esta pergunta”.

Vai daí que vão todos lamber sabão. Não desovei nada criativo até agora. Apreciem os raios de sol, a minha flor de cactos que nasceu ontem em todo o seu esplendor, os pássaros, as montanhas e se concentrem nos ciúmes de Bentinho, que tá na cara que a Capitu botou um ornamento na sua testa, digno da criatividade de um gênio como Machado de Assis.

Eu vou ficar aqui como Bentinho, desconfiada de que a inspiração, como Capitu, depois de anos de felicidade bandeou pro lado de algum poeta ou escritor mais merecendente do que eu.

Só me resta dizer como disse ontem a uma vaca sagrada da cirurgia, que vai precisar de toda a sua criatividade pra substituir um joelho melequento. Sem garantias. O que você escolhe?

“Continuar-me”, como Saramago. É o que resta. No mais, todo mundo vá catar conchinha!. Vai chover e tenho de tirar a roupa do varal. E como disse Elise Matsunaga: “Vamos por partes!”.

 

 

 

Maria Solange Amado Ladeira                                                28/04/2025

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Só dá pra ser mais ou menos

 

Só dá pra ser mais ou menos

Solange Amado

 

A tia nasceu assim, uma feia normal. Com o tempo aceitou que o destino dos normais é serem... comuns. Não adianta fazer pirraça.

Na adolescência ela sonhava em ser linda como uma estrela de cinema e que os homens caíssem a seus pés como moscas sob a bombada de algum detefon. Não rolou.

Então, ela pensou em substituir a beleza pelo talento. Até compreender que não se pode forçar a barra. As coisas são como são. Ontem ela ouviu um cantor sertanejo confessando a sua paixão em uma letra genial: “depois que te beijei, não dá mais pra desbeijar”. É isso. Foi beijada ou bafejada com o lugar comum, melhor se render. Não dá mais pra desbeijar. É isso. Tudo é relativo.

Sua irmã mora em um edifício no Rio de Janeiro, no mesmo andar que uma pianista muito famosa. Com uma sala ampla, a mulher botou lá dentro um piano de cauda, e quando não está fazendo concertos pelo mundo, manda ver dia e noite nas teclas do piano. Vocês podem pensar que é um privilégio ter uma concertista famosa do outro lado do corredor. Negativo. A vizinha da porta ao lado deu de chiar com o síndico reclamando do barulho. O pecado mora ao lado. A pianista botou isolamento acústico em todas as paredes. Neca. A tia tomou para si suas dores. O cachorro da vizinha também late e ninguém reclama, tem buzina, construção, bate estaca e todos aguentam, mas o piano incomoda. Eita país! É “essa inguinorança que astravanca o porgreço!”.

Pelo menos ela pensava assim, até que um dia  ficou mais de dez minutos no corredor esperando o elevador que emperrou em algum andar. A pianista estudava. O som saia límpido pela porta. O mesmo trecho, repetido ad infinitum. O pizzicato não saia de maneira correta e ela não desistiria enquanto a coisa não saísse irrepreensível. Nada menos do que a perfeição. E a tia que é a maria do mais ou menos, quase bateu na porta e pediu arrego. Deu nos nervos. Entrou em desespero. Santa Virgem!

E é disso que se trata aqui, embora o preâmbulo tenha sido longo. Botox, harmonização facial, bichectomia, preenchimento. Não adianta. Se a cegonha depositou você na vala do lugar comum, e o tempo reclamou sua parte nesse latifúndio, não vai rolar nenhuma Marilyn Monroe. Conforme-se e dê graças a Deus.

E eis que chegamos à velhinha da vizinhança. Tem quase dez anos mais que a tia.É alta, espadaúda, vaidosa, viva, faladeira. De bonito tem o sorriso largo e os lábios cheios de uma Sofia Loren tupininquim. No mais, cai na vala comum dos feios normais.  Rugas e caqueiras da idade. Há pouco tempo, sofreu uma queda na rua, quebrou o fêmur direito. Demorou pouco no estaleiro, largou andador e muletas e ficou só com uma bengala charmosa com cabo de prata. Alguns meses depois, repetiu a dose com o fêmur esquerdo. Outra peleja. Mas renasceu como uma fênix das cinzas, meio cambaleante é certo. Nada demais. Happy End.

Dia desses ela telefona. Queria dois dedos de prosa. Estava cansada de limitações.  A tia abre a porta. Uau! O boi da cara preta! O que é isso? Acreditem se quiserem. Deu uma repaginada. Com direito a tudo isso e o céu também. Cara toda roxa e inchada como se tivesse perdido uma luta de boxe. Caramba!  A vizinhança está no aguardo de algumas melhorias na fachada.

Com um plissado de respeito na cara, a tia pode até consultar os universitários, mas nunca foi uma otimista desse tanto. Aliás, já leu em algum lugar e concorda que “o otimista é um pessimista sem muita experiência”.

 

Maria Solange Amado Ladeira – 03/07/2023

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O talento

 


O talento

Solange Amado

Tem uma ideiazinha minhocando na minha cabeça. Urge coloca-la pra fora, ou vai dar ruim. Mas também tem uma pia cheia de vasilhas pra lavar, lixo pra botar pra fora,   plantas pra botar água, roupa pra lavar, espantar a poeira de casa, minha fiel companheira. Sem falar na cama, mais amarrotada do que a minha cara. Meio dia e a cama ainda não foi feita. Me desculpe, mãe!

É isso aí, galera. Mas de cara eu acho injusto. Por acaso Saramago teve de se haver primeiro com pratos sujos, lixo acumulando, troca do rolo de papel higiênico antes de se sentar e escrever “Ensaio sobre a cegueira”? Qualquer talento vai pro brejo se tiver que lavar cuecas sujas. Essa é a grande diferença entre tá lento e talento.

Então, estamos conversados. Ainda não arrebentei para o mundo das letras porque essa vidinha medíocre de proletária grudou no meu casco.

Estou aqui remoendo essas injustiças do mundo e para me vingar mergulho no próximo livro da minha lista de “não lidos”. É só não botar a cabeça pra fora pra respirar que fica tudo numa boa. Não preciso encarar as idiossincrasias da vida. Vou só botando reparo nos perrengues da autora. Que, além de tudo, gosta de cozinhar, de pescar em alto mar e de usar palavras difíceis, E aí arrumo mais um problema, um não, uma porção. Um dia me torno erudita, prometo. Enquanto isso, peço ajuda aos universitários e tenho esperança de que vou me transformar um dia em uma desasnada.

À medida que vou atravessando o Rubicão da autora, vão aparecendo uma por uma as palavrinhas lazarentas: sicambre, enxárcias, cornucópia, cantatório, filaucioso, mendacioso (essa eu manjei! Tem muito hoje em dia), zaragatoa, paramécio. E meu suposto talento vai murchando nessa selva de letras misteriosas.

E vocês pensam que são desasnados, não? Não sabem de nada! E não temos nada a fazer. A autora já morreu (a menos que tenha ficado para indês). Mas ainda temos a nossa vingança precária. Um dia ela foi comprar um fogão por indução (que já foi um desejo meu). O cara chega para instalar o fogão. “Cadê os botões para ligar e desligar?” “Não há, minha senhora. É só pressionar com os dedos e as luzinhas acendem”. (Esse “minha senhora” é porque ele é francês) “E se meu gato pular no fogão? Ele liga?”. “Liga, minha senhora. Tem que tomar conta do gato.” “Vou experimentar agora.”  “Não. Não pode ser com essas panelas convencionais. Só panelas que têm escrito por baixo “indução””.  “Então eu tenho de jogar fora todas as minhas panelas?”  “Só mais um lembrete, minha senhora, se a senhora usar marca-passo, tem de consultar primeiro o seu cardiologista”.

Tenho poucas panelas, nenhum gato e não uso marca-passo, mas já desisti de ser escritora e de fogão por indução.

Vai daí, como deu trabalho , vou dividir minha nova sapiência para que vocês fiquem mais desasnados:

Sicambre – investigador, cuidador

Cantatório – demorado

Enxárcias – conjunto de cabos e polias que servem para içar e manobrar as velas de um                       navio.

Cornucópia – abundancia,

Filaucioso – presunçoso

Mendacioso – falador de mentiras

Zaragatoa – instrumentos que serve para aplicar ou coletar medicamentos.

Paramécio – ser assexuado.

E a cereja do bolo: desasnado – pessoa que adquire conhecimento. Fica menos asno.

 

E aí, nos despedimos um pouco mais desasnados.

 

 

 

 

 

Maria Solange Amado Ladeira                                14/09/2023

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O dia em que me tornei salafrária

 

O dia em que me tornei salafrária

Solange Amado

A culpa foi dele. Mas eu sabia que ia sobrar pra mim. Como sempre. Hora do recreio. Ele passou por mim e falou no meu ouvido: “Paraíba!”. E aí, eu fui lá e dei um soco na cara dele que abriu o berreiro, naturalmente. Virei as costas e fui andando. Aí, ele me deu um empurrão. O detalhe é que eu estava tomando um refrigerante. A garrafa era de vidro. Bati na parede, o vidro por sua vez bateu no meu dente da frente e tirou um pedaço.  Dente de leite é substituível, a gente sabe. Nasce outro. Mas o meu não era de leite. Ficou faltando um pedacinho para todo o sempre. Mais uma avaria numa fachada com poucos atrativos.

Não parou por aí. A professora apareceu do nada, me pegou pelas orelhas e me levou pra sala da diretoria. Beliscões tudo bem. Ela podia se servir deles ocasionalmente sem nenhuma comoção social. Mas torcer as orelhas era brabo. Minhas orelhas eram a salvação da pátria. Uma moldura bem linda para um quadro bem roskoff. Dizem que na velhice os lóbulos se penduram feito pelancas. Mas eu não pensava em ficar velha. Por enquanto, eles eram duas linguinhas cor de rosa insinuando-se como a lua por entre as nuvens de cabelo. “Tire as mãos daí!”. Eu surtei. E lutei bravamente pelo meu tesouro.

Resultado: sala da diretoria. A última instância. Era o STF do Grupo Escolar. E tão instável quanto. Se a diretora estivesse de ovo virado. Esquece. Mesmo que a falta não fosse das piores, a ira do Senhor poderia nos atingir. Rezei para que a pena fosse leve.

E havia ainda uma questão técnica. Além da vontade de fazer xixi, uma hora além do horário do término das aulas, colocaria a perder minha reputação.

Explico: A Biblioteca Pública era ao lado do Grupo Escolar. Um ano antes, atingi a maioridade para pegar livros. Aos 7 já era frequentadora assídua. Fui lá, assinei um contrato que me obrigava a devolver religiosamente a obra até a data constante no cartãozinho pregado na última página do livro. Meu pai dizia que quem não cumpre seus contratos é um salafrário.

A Biblioteca fechava pouco depois das aulas. Não ia dar tempo de devolver as “Reinações de Narizinho” a tempo.

Mais do que a dor nas orelhas eu ia ser a nova salafrária da praça. A Bibliotecária ia entrar na justiça, meu pai ia receber um volume grosso com todas as acusações feitas a mim, eu poderia ser presa e ainda levar boas chineladas por envergonhar a família.

Foi sofrido. A diretora rubicunda partiu o castigo no meio: só meia hora, talvez porque minha mãe também fosse professora lá. Já havia essas paradas de nepotismo e coisas que tais.

Mesmo assim, não deu tempo. Listei uma quantidade de explicações para devolver o livro. Sofri atoa. A mulher nem deu pela parada do atraso. Era idosa. Os idosos confundem as datas. Escapei dessa.

Quanto ao meu dente, ninguém prestou muita atenção. Muitos anos depois, um dentista fez um remendo meia boca. Como dizia minha mãe “pra quem é, bacalhau basta”. O lóbulo da orelha ainda não despencou, graças a Deus. E o coleguinha maricas tirou a própria vida muitos anos depois. Vocês podem dizer que foi por causa do meu soco na cara dele. Mas não foi. Ele começou primeiro. Me arrebentou o dente, periguei ser presa por ser salafrária. E pior, podia estar presa até hoje por não cumprimento do contrato.

A vida não é justa. Eu sei. Hoje em dia, honrar as calças, cumprir as promessas são conceitos tão fluidos. Não carece de culpa nem de vergonha na cara. Também não se puxam as orelhas e se dão beliscões porque o amor está no ar. Só se for brincadeirinha.

Mas vou avisando, sem essa de paz e amor, quem me chamar de “paraíba” leva um soco no meio da cara. Falou?

 

 

Maria Solange Amado Ladeira               12/07/2023

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Um garotinho sem infância

 

Um garotinho sem infância

Solange Amado

Ratátátá! O garotinho sudanês, aparentando mais ou menos 7 anos, miúdo e faminto, arrastava uma kalashnikov 47 nas mãos, mais pesada do que ele. E matava. A quem? Nem ele sabia direito. Era Emmanuel Jal, que se tornou um rapper africano. E eu leio avidamente sua história.

O Sudão tem uma ditadura que mata, além de inúmeras etnias, crenças, religiões, um monte de dialetos, fome e sede. Muito ódio e fanatismo. E um mundo de riqueza embaixo da terra. Dividir para conquistar. Uma eterna guerra.

Cada vez que a aldeia do garoto era invadida, metralhavam um bocado de gente, saqueavam, estupravam as mulheres ou simplesmente matavam. Ateavam fogo às choças e raptavam as criancinhas, mesmo as mais novas, para se tornarem “meninos soldados”. Foi numa dessas que Emmanuel foi raptado por um grupo e se tornou um “guerreiro”. Aquele eram o único referencial de homem que ele tinha. E ele se tornou um deles.

O garotinho no entanto, era muito inteligente, e o destino fez com que ele fosse adotado alguns anos depois. Um leão selvagem. Estudou sem nenhuma disciplina para o aprendizado, mas conheceu a música. E foi em frente. Vejo as suas fotos coloridas, com líderes africanos, Mandela inclusive. Um rapaz que não cresceu muito devido à desnutrição  e com um cabelo cor de palha que a fome descoloriu.

Antes de chegar aos finalmentes da sua história, tive de atravessar cerca de 350 páginas de puro sofrimento, dor, violência, ódio e vingança. Fui fazendo pequenas pausas pra tomar fôlego, mas não consegui me desgrudar daquela insanidade. Até acho que há uma caixinha de psicopatia dentro de cada um de nós, com uma fechadura mambembe. Se forçar um pouco, vem o estouro da boiada. A crueldade também atrai.

Então, fui desbravando no meio de uma guerra violenta e sem sentido, a vida desse menininho inacreditável. Na vida pessoal, eu ruminava o incômodo, mil vezes menor, de estar sem computador há duas semanas e o fato de o técnico estar me dando tantos bolos que eu poderia montar uma festa infantil. Embora as situações não possam nunca ser comparadas, eu podia entender um bilionésimo da frustração e a raiva do garoto nessa vida, mas eu nunca tive uma AK 47. Me limitei a ficar putzgrila da vida contra as injustiças do mundo, contra os técnicos de computador em geral e fui em frente engolindo as páginas do livro. Parar de ler não é uma alternativa.

E sem mais delongas, embora tenha me calado fundo na alma o drama desse e de outros meninos sudaneses num país sem infância, um episódio me chamou a atenção: De vez em quando, a ONU enviava por helicópteros, voluntários pra trabalhar nas aldeias, com grandes caixas de alimentos e medicamentos.  Rapidamente, os voluntários armavam grandes barracas, faziam comida e distribuíam diariamente, alimentando filas intermináveis de gente meio morta de fome. E ficavam por alí um tempo. Não eram atacados porque não se metiam nas pendengas políticas e traziam comida e assistência médica. Os guerrilheiros não matariam a galinha dos ovos de ouro.

Ninguém no meio daquelas aldeias jamais havia visto uma pessoa branca, olhos azuis, cabelos loiros. E aquelas mulheres usavam calça! E ainda falavam uma língua estranha que ninguém entendia. Verdadeiros ETs. Ficaram sendo os “albinos”. Eles conheciam negros albinos.

Certo dia os garotinhos combinaram acompanhar uma mulher branca que saia de uma das barracas de manhã, pra ver se elas se aliviavam do mesmo jeito que uma mulher negra. Nunca se sabe.

A mulher se embrenhou no matagal. A criançada sorrateira atrás, deitados no mato. A mulher se agachou. Os garotos botaram reparo na anatomia. Repararam o xixi e o cocô. Tudo igual. Tirante a língua, não havia nada de diferente naquelas “albinas”. Foi um enorme achado.

Aqueles garotinhos sudaneses perceberam algo que nós, mais sabidos e civilizados não percebemos. Por mais que queiram nos dividir entre heteros, bi, tri, etc, negros, brancos, amarelos, ricos e pobres, sábios e idiotas, cultos e ignorantes. Por mais que queiram abrir um abismo entre nós humanos, a merda é a mesma. E ela nos iguala.

 

 

 

Maria Solange Amado Ladeira                            07/08/2023

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A honestidade respira por aparelhos

 

A honestidade respira por aparelhos

Solange Amado

Já acordou assim: não muito benta. Mato ou não mato? A vítima permanecia encurralada num canto, cheia de pavor. A velha titubeou, mas resolveu aliviar. Deixou-a ir embora. Não por misericórdia, mas por nojo. Pisar na cabeça da bichinha, além de sujar seus sapatos, vai que, no desespero, num gesto precipitado de fuga, aquela coisa poderia pular nas suas pernas. Já bastava aquele berro histérico quando ao abrir a porta deu de cara com aquele filhotinho de lagartixa desgarrado. Aquele pingo de gente assim solta na véspera do “dia das Mães”, nem devia ter sido desmamada, se é que lagartixa já mamou algum dia.

Apesar de saber que ela representava perigo zero, não tinha nenhum problema de consciência. Coração duro, não era fácil se emocionar. Vai que a bichona se enfia debaixo das suas cobertas e passeia pelo seu corpo desavisado, adormecido. Dá gastura. Vai que ela se esconde em algum desvão de suas avantajadas protuberâncias, ou de sua alma? O que seria pior. Numa hora em que o mundo está desgovernado, lagartixas na alma não são uma boa pedida.

Claro, talvez esteja precisando de cócegas no ego. Todo mundo precisa, mesmo que não admita. Ninguém admite que é único. E que, frequentemente precisa dar uma banana para o mundo pra ser ele mesmo. É preciso sempre fingir que é bonzinho pra ser aprovado pelo bando. Vai jogando pra plateia. Só embalagem. O conteúdo fica pra inglês ver. Bom, sob esse ponto de vista, ela concede, cócegas no ego, nas atuais circunstâncias, pode funcionar.

E aí ela sai para as compras. Primeiro na farmácia. O remédio era pra ser tomado durante um mês “um comprimido por dia sem falta”. Preço salgado. Pois bem, a caixinha contém 28 comprimidos; só para obrigá-la a comprar mais uma caixa e completar os 30. Sacanagem pura. Agora, vamos à padaria onde compra suas bolachinhas preferidas. O pacote tem o mesmo tamanho, mas emagreceu. Parece uma salsicha. O cara garante que a quantidade é a mesma.  Ela não acredita. Tecnicamente impossível. Bingo! Só dá pra preencher metade do vidro que tem em casa, quando antes o preenchia inteiro. Ah! Mas tem as barrinhas de cereal: o tamanho da embalagem é o mesmo, mas a barrinha encolheu, parece aqueles homens de bundinha chupada que não preenchem devidamente as calças. Sempre sobra pano. E o que dizer do papel higiênico? A embalagem diz que tem 30 metros. Se tiver a coragem de medir, não tem nem 20. Não dura nada. Ou isso ou tá todo mundo obrando mais. Logo na hora em que a sujeira no país requer muito papel higiênico!

Ela foi roubada tantas vezes num espaço de tempo tão curto, que matar uma lagartixa não é nenhum assassinato digno de nota. Afinal, ela invadiu o seu domicílio. Além disso, é normal no ser humano jogar a culpa em alguém por qualquer mal-estar na civilização. É libertador.  Nem que esse alguém seja uma lagartixa (é até bom que seja uma!). O ser humano não tem remédio. Devia ter matado a danada, só de raiva.

E vai daí que no mesmo dia, nossa heroína esquece a carteira num táxi, com 600 reais dentro. Caracas! Reza pra são Longuinho. Dá três pulinhos, mas é experiente o bastante pra saber que é caso perdido nesse país confiável, Além disso, não se lembra da placa do carro, nem da cara do motorista, Pegou-o na correria, na porta de casa quando alguém desembarcava. E agora, José? Só deu pelo fato horas depois.

Adeus grana! Devia ter matado a lagartixa lazarenta! Chora as pitangas com o porteiro e lamenta sua malfadada sina. É quando a bendita criatura lhe diz: “Uai! Um chofer de táxi apareceu aqui hoje, disse que pegou uma senhora, ainda jovem (sic!), de cabelos curtos  (e memória fraca), aqui nesse endereço e ela esqueceu a carteira com dinheiro no seu táxi. Não consegui saber que senhora jovem era essa (sem comentários...). Ele deixou um numero de telefone”.

Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! A humanidade não está de todo perdida! O gajo não aceitou nenhuma recompensa: “Não dona. É minha obrigação. Não é meu!”.

Acreditem se quiser, o milagre aconteceu na pessoa de um taxista baixinho e franzino. Ainda bem que ela não matou a lagartixa. A honestidade, mesmo respirando por aparelhos, ainda resiste! Amém.

 

 

 

 

 

·         Maria Solange Amado  Ladeira                       04/05/2021

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Beleza Interior

 


Beleza interior

Solange Amado

Ela concorda em gênero e número, mas não tem culpa nenhuma. Não foi ela que disse. Foi Umberto Eco: “O prazer da erudição é reservado aos perdedores. Quanto mais uma pessoa sabe, menos coisas deram certo para ela”. Do que se depreende que é melhor ficar com o arroz com feijão mesmo. Então vamos a ele.

A tia nunca se notabilizou pela beleza e cansou de ouvir essas palavras consoladoras: “beleza que conta é a beleza interior”. E aí ela deu de se virar pelo avesso. Não apareceu nenhuma beleza interior e Umberto Eco desaconselhou a erudição. Entretanto, surgiu uma pontinha de esperança. Ela pensou: beleza interior é coisa de decoração. A gente contrata um decorador e todo mundo vai se boquiabrir com a nossa beleza interior. Faz sentido, porque aqui fora a porqueira tá demais.

Aí é preciso saber com o quê decorar o seu interior. Melhor ir  fundo. Acionou um amigo que é muito bom de decoreba. Ele lhe deu uns palpites, emprestou-lhe alguns livros e ela resolveu atravessar o Rubicão de enfeitar o seu íntimo.

Antes de qualquer coisa, teve de caprichar no biquinho francês. Maior chiquê. E lá foi ela: recamier, capitonê, decapê, craquelê, canapé. Envergonhou-se de não ter nada dessa belezura interior nos seus aposentos.

Mas não façam pouco da tia. Ela descobriu que tem um criado mudo, mas esse não tem o biquinho francês. É uma invenção inglesa dos idos de 1740. E não é só. Ornamentando a sua parede tem uma découpage. Foi um presente. E para quem não sabe, consiste em recorte e colagem de papéis formando um desenho legal. Foi Maria Antonieta, no século XVIII que lançou a mania, talvez por falta do que fazer. Só que ela escrevia nas suas obras: “découpage faite par la reine”. O da tia não tem essa inscrição. Não foi presente da Maria Antonieta. Mas é bacana. Beleza mais humilde, mas nem porisso menos nobre.

E fiquem atentos os que vão “decorar o seu interior”. É preciso não confundir alhos com bugalhos; por exemplo, não confundir namoradeira com conversadeira. A namoradeira tem a forma de S, duas poltronas grudadas, uma virada pra frente outra pra trás. Péssimo para o rala e rola. Mas os reis franceses não ralavam, só rolavam. A conversadeira consiste num sofazinho sem vergonha, estreito, que toda casa de pobre tem, a tia também, é claro.  E não é art-déco, é art-nouveau. A fofoca na conversadeira é que não é nouveau. É mais velha do que a Sé de Braga.

Cristaleira também é um móvel curinga em toda mansão: tem cristais, lalique, limoges,  baccarat, satinê, bisotê, biscuit. E oui, se quiser pode quebrar o galho  na rua dos Caetés pra quem não tem nenhuma “erudição decorativa”, como a tia, que toma café na caneca mesmo.

Os tapetes são essenciais. De preferência os persas, mas a tia prefere os turcos, em que a macheza das cores fortes predomina, e não mudam “as cô” como diria a sua faxineira.

Infelizmente, seu bolso não acompanha seu gosto nem seu entusiasmo.

De qualquer maneira, a tia avisa que opinião e gosto é coisa de fôro íntimo. Cada um decora o seu interior como quiser e ninguém tem nada com isso. Aliás, até Deus deu uma tropeçadinha, na opinião do falecido economista Roberto Campos, quando colocou mamilo no homem, coisa que, pra ele, “não é nem útil nem ornamental”.

Vai ver é erudito.

 

 

 

 

Maria Solange Amado Ladeira                               21/02/2023

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