O dia em que me tornei salafrária

 

O dia em que me tornei salafrária

Solange Amado

A culpa foi dele. Mas eu sabia que ia sobrar pra mim. Como sempre. Hora do recreio. Ele passou por mim e falou no meu ouvido: “Paraíba!”. E aí, eu fui lá e dei um soco na cara dele que abriu o berreiro, naturalmente. Virei as costas e fui andando. Aí, ele me deu um empurrão. O detalhe é que eu estava tomando um refrigerante. A garrafa era de vidro. Bati na parede, o vidro por sua vez bateu no meu dente da frente e tirou um pedaço.  Dente de leite é substituível, a gente sabe. Nasce outro. Mas o meu não era de leite. Ficou faltando um pedacinho para todo o sempre. Mais uma avaria numa fachada com poucos atrativos.

Não parou por aí. A professora apareceu do nada, me pegou pelas orelhas e me levou pra sala da diretoria. Beliscões tudo bem. Ela podia se servir deles ocasionalmente sem nenhuma comoção social. Mas torcer as orelhas era brabo. Minhas orelhas eram a salvação da pátria. Uma moldura bem linda para um quadro bem roskoff. Dizem que na velhice os lóbulos se penduram feito pelancas. Mas eu não pensava em ficar velha. Por enquanto, eles eram duas linguinhas cor de rosa insinuando-se como a lua por entre as nuvens de cabelo. “Tire as mãos daí!”. Eu surtei. E lutei bravamente pelo meu tesouro.

Resultado: sala da diretoria. A última instância. Era o STF do Grupo Escolar. E tão instável quanto. Se a diretora estivesse de ovo virado. Esquece. Mesmo que a falta não fosse das piores, a ira do Senhor poderia nos atingir. Rezei para que a pena fosse leve.

E havia ainda uma questão técnica. Além da vontade de fazer xixi, uma hora além do horário do término das aulas, colocaria a perder minha reputação.

Explico: A Biblioteca Pública era ao lado do Grupo Escolar. Um ano antes, atingi a maioridade para pegar livros. Aos 7 já era frequentadora assídua. Fui lá, assinei um contrato que me obrigava a devolver religiosamente a obra até a data constante no cartãozinho pregado na última página do livro. Meu pai dizia que quem não cumpre seus contratos é um salafrário.

A Biblioteca fechava pouco depois das aulas. Não ia dar tempo de devolver as “Reinações de Narizinho” a tempo.

Mais do que a dor nas orelhas eu ia ser a nova salafrária da praça. A Bibliotecária ia entrar na justiça, meu pai ia receber um volume grosso com todas as acusações feitas a mim, eu poderia ser presa e ainda levar boas chineladas por envergonhar a família.

Foi sofrido. A diretora rubicunda partiu o castigo no meio: só meia hora, talvez porque minha mãe também fosse professora lá. Já havia essas paradas de nepotismo e coisas que tais.

Mesmo assim, não deu tempo. Listei uma quantidade de explicações para devolver o livro. Sofri atoa. A mulher nem deu pela parada do atraso. Era idosa. Os idosos confundem as datas. Escapei dessa.

Quanto ao meu dente, ninguém prestou muita atenção. Muitos anos depois, um dentista fez um remendo meia boca. Como dizia minha mãe “pra quem é, bacalhau basta”. O lóbulo da orelha ainda não despencou, graças a Deus. E o coleguinha maricas tirou a própria vida muitos anos depois. Vocês podem dizer que foi por causa do meu soco na cara dele. Mas não foi. Ele começou primeiro. Me arrebentou o dente, periguei ser presa por ser salafrária. E pior, podia estar presa até hoje por não cumprimento do contrato.

A vida não é justa. Eu sei. Hoje em dia, honrar as calças, cumprir as promessas são conceitos tão fluidos. Não carece de culpa nem de vergonha na cara. Também não se puxam as orelhas e se dão beliscões porque o amor está no ar. Só se for brincadeirinha.

Mas vou avisando, sem essa de paz e amor, quem me chamar de “paraíba” leva um soco no meio da cara. Falou?

 

 

Maria Solange Amado Ladeira               12/07/2023

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