Beleza Interior

 


Beleza interior

Solange Amado

Ela concorda em gênero e número, mas não tem culpa nenhuma. Não foi ela que disse. Foi Umberto Eco: “O prazer da erudição é reservado aos perdedores. Quanto mais uma pessoa sabe, menos coisas deram certo para ela”. Do que se depreende que é melhor ficar com o arroz com feijão mesmo. Então vamos a ele.

A tia nunca se notabilizou pela beleza e cansou de ouvir essas palavras consoladoras: “beleza que conta é a beleza interior”. E aí ela deu de se virar pelo avesso. Não apareceu nenhuma beleza interior e Umberto Eco desaconselhou a erudição. Entretanto, surgiu uma pontinha de esperança. Ela pensou: beleza interior é coisa de decoração. A gente contrata um decorador e todo mundo vai se boquiabrir com a nossa beleza interior. Faz sentido, porque aqui fora a porqueira tá demais.

Aí é preciso saber com o quê decorar o seu interior. Melhor ir  fundo. Acionou um amigo que é muito bom de decoreba. Ele lhe deu uns palpites, emprestou-lhe alguns livros e ela resolveu atravessar o Rubicão de enfeitar o seu íntimo.

Antes de qualquer coisa, teve de caprichar no biquinho francês. Maior chiquê. E lá foi ela: recamier, capitonê, decapê, craquelê, canapé. Envergonhou-se de não ter nada dessa belezura interior nos seus aposentos.

Mas não façam pouco da tia. Ela descobriu que tem um criado mudo, mas esse não tem o biquinho francês. É uma invenção inglesa dos idos de 1740. E não é só. Ornamentando a sua parede tem uma découpage. Foi um presente. E para quem não sabe, consiste em recorte e colagem de papéis formando um desenho legal. Foi Maria Antonieta, no século XVIII que lançou a mania, talvez por falta do que fazer. Só que ela escrevia nas suas obras: “découpage faite par la reine”. O da tia não tem essa inscrição. Não foi presente da Maria Antonieta. Mas é bacana. Beleza mais humilde, mas nem porisso menos nobre.

E fiquem atentos os que vão “decorar o seu interior”. É preciso não confundir alhos com bugalhos; por exemplo, não confundir namoradeira com conversadeira. A namoradeira tem a forma de S, duas poltronas grudadas, uma virada pra frente outra pra trás. Péssimo para o rala e rola. Mas os reis franceses não ralavam, só rolavam. A conversadeira consiste num sofazinho sem vergonha, estreito, que toda casa de pobre tem, a tia também, é claro.  E não é art-déco, é art-nouveau. A fofoca na conversadeira é que não é nouveau. É mais velha do que a Sé de Braga.

Cristaleira também é um móvel curinga em toda mansão: tem cristais, lalique, limoges,  baccarat, satinê, bisotê, biscuit. E oui, se quiser pode quebrar o galho  na rua dos Caetés pra quem não tem nenhuma “erudição decorativa”, como a tia, que toma café na caneca mesmo.

Os tapetes são essenciais. De preferência os persas, mas a tia prefere os turcos, em que a macheza das cores fortes predomina, e não mudam “as cô” como diria a sua faxineira.

Infelizmente, seu bolso não acompanha seu gosto nem seu entusiasmo.

De qualquer maneira, a tia avisa que opinião e gosto é coisa de fôro íntimo. Cada um decora o seu interior como quiser e ninguém tem nada com isso. Aliás, até Deus deu uma tropeçadinha, na opinião do falecido economista Roberto Campos, quando colocou mamilo no homem, coisa que, pra ele, “não é nem útil nem ornamental”.

Vai ver é erudito.

 

 

 

 

Maria Solange Amado Ladeira                               21/02/2023

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