O talento
Solange Amado
Tem uma ideiazinha minhocando na minha cabeça. Urge coloca-la
pra fora, ou vai dar ruim. Mas também tem uma pia cheia de vasilhas pra lavar,
lixo pra botar pra fora, plantas pra
botar água, roupa pra lavar, espantar a poeira de casa, minha fiel companheira.
Sem falar na cama, mais amarrotada do que a minha cara. Meio dia e a cama ainda
não foi feita. Me desculpe, mãe!
É isso aí, galera. Mas de cara eu acho injusto. Por acaso
Saramago teve de se haver primeiro com pratos sujos, lixo acumulando, troca do
rolo de papel higiênico antes de se sentar e escrever “Ensaio sobre a
cegueira”? Qualquer talento vai pro brejo se tiver que lavar cuecas sujas. Essa
é a grande diferença entre tá lento e talento.
Então, estamos conversados. Ainda não arrebentei para o mundo
das letras porque essa vidinha medíocre de proletária grudou no meu casco.
Estou aqui remoendo essas injustiças do mundo e para me
vingar mergulho no próximo livro da minha lista de “não lidos”. É só não botar
a cabeça pra fora pra respirar que fica tudo numa boa. Não preciso encarar as
idiossincrasias da vida. Vou só botando reparo nos perrengues da autora. Que,
além de tudo, gosta de cozinhar, de pescar em alto mar e de usar palavras
difíceis, E aí arrumo mais um problema, um não, uma porção. Um dia me torno
erudita, prometo. Enquanto isso, peço ajuda aos universitários e tenho
esperança de que vou me transformar um dia em uma desasnada.
À medida que vou atravessando o Rubicão da autora, vão
aparecendo uma por uma as palavrinhas lazarentas: sicambre, enxárcias,
cornucópia, cantatório, filaucioso, mendacioso (essa eu manjei! Tem muito hoje
em dia), zaragatoa, paramécio. E meu suposto talento vai murchando nessa selva
de letras misteriosas.
E vocês pensam que são desasnados, não? Não sabem de nada! E
não temos nada a fazer. A autora já morreu (a menos que tenha ficado para
indês). Mas ainda temos a nossa vingança precária. Um dia ela foi comprar um
fogão por indução (que já foi um desejo meu). O cara chega para instalar o
fogão. “Cadê os botões para ligar e desligar?” “Não há, minha senhora. É só
pressionar com os dedos e as luzinhas acendem”. (Esse “minha senhora” é porque
ele é francês) “E se meu gato pular no fogão? Ele liga?”. “Liga, minha senhora.
Tem que tomar conta do gato.” “Vou experimentar agora.” “Não. Não pode ser com essas panelas convencionais.
Só panelas que têm escrito por baixo “indução””. “Então eu tenho de jogar fora todas as minhas
panelas?” “Só mais um lembrete, minha
senhora, se a senhora usar marca-passo, tem de consultar primeiro o seu
cardiologista”.
Tenho poucas panelas, nenhum gato e não uso marca-passo, mas
já desisti de ser escritora e de fogão por indução.
Vai daí, como deu trabalho , vou dividir minha nova sapiência
para que vocês fiquem mais desasnados:
Sicambre – investigador, cuidador
Cantatório – demorado
Enxárcias – conjunto de cabos e polias que servem para içar e
manobrar as velas de um
navio.
Cornucópia – abundancia,
Filaucioso – presunçoso
Mendacioso – falador de mentiras
Zaragatoa – instrumentos que serve para aplicar ou coletar
medicamentos.
Paramécio – ser assexuado.
E a cereja do bolo: desasnado – pessoa que adquire
conhecimento. Fica menos asno.
E aí, nos despedimos um pouco mais desasnados.
Maria Solange Amado Ladeira 14/09/2023
www.versiprosear.blogspot.com.br
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