Só dá pra ser mais ou menos

 

Só dá pra ser mais ou menos

Solange Amado

 

A tia nasceu assim, uma feia normal. Com o tempo aceitou que o destino dos normais é serem... comuns. Não adianta fazer pirraça.

Na adolescência ela sonhava em ser linda como uma estrela de cinema e que os homens caíssem a seus pés como moscas sob a bombada de algum detefon. Não rolou.

Então, ela pensou em substituir a beleza pelo talento. Até compreender que não se pode forçar a barra. As coisas são como são. Ontem ela ouviu um cantor sertanejo confessando a sua paixão em uma letra genial: “depois que te beijei, não dá mais pra desbeijar”. É isso. Foi beijada ou bafejada com o lugar comum, melhor se render. Não dá mais pra desbeijar. É isso. Tudo é relativo.

Sua irmã mora em um edifício no Rio de Janeiro, no mesmo andar que uma pianista muito famosa. Com uma sala ampla, a mulher botou lá dentro um piano de cauda, e quando não está fazendo concertos pelo mundo, manda ver dia e noite nas teclas do piano. Vocês podem pensar que é um privilégio ter uma concertista famosa do outro lado do corredor. Negativo. A vizinha da porta ao lado deu de chiar com o síndico reclamando do barulho. O pecado mora ao lado. A pianista botou isolamento acústico em todas as paredes. Neca. A tia tomou para si suas dores. O cachorro da vizinha também late e ninguém reclama, tem buzina, construção, bate estaca e todos aguentam, mas o piano incomoda. Eita país! É “essa inguinorança que astravanca o porgreço!”.

Pelo menos ela pensava assim, até que um dia  ficou mais de dez minutos no corredor esperando o elevador que emperrou em algum andar. A pianista estudava. O som saia límpido pela porta. O mesmo trecho, repetido ad infinitum. O pizzicato não saia de maneira correta e ela não desistiria enquanto a coisa não saísse irrepreensível. Nada menos do que a perfeição. E a tia que é a maria do mais ou menos, quase bateu na porta e pediu arrego. Deu nos nervos. Entrou em desespero. Santa Virgem!

E é disso que se trata aqui, embora o preâmbulo tenha sido longo. Botox, harmonização facial, bichectomia, preenchimento. Não adianta. Se a cegonha depositou você na vala do lugar comum, e o tempo reclamou sua parte nesse latifúndio, não vai rolar nenhuma Marilyn Monroe. Conforme-se e dê graças a Deus.

E eis que chegamos à velhinha da vizinhança. Tem quase dez anos mais que a tia.É alta, espadaúda, vaidosa, viva, faladeira. De bonito tem o sorriso largo e os lábios cheios de uma Sofia Loren tupininquim. No mais, cai na vala comum dos feios normais.  Rugas e caqueiras da idade. Há pouco tempo, sofreu uma queda na rua, quebrou o fêmur direito. Demorou pouco no estaleiro, largou andador e muletas e ficou só com uma bengala charmosa com cabo de prata. Alguns meses depois, repetiu a dose com o fêmur esquerdo. Outra peleja. Mas renasceu como uma fênix das cinzas, meio cambaleante é certo. Nada demais. Happy End.

Dia desses ela telefona. Queria dois dedos de prosa. Estava cansada de limitações.  A tia abre a porta. Uau! O boi da cara preta! O que é isso? Acreditem se quiserem. Deu uma repaginada. Com direito a tudo isso e o céu também. Cara toda roxa e inchada como se tivesse perdido uma luta de boxe. Caramba!  A vizinhança está no aguardo de algumas melhorias na fachada.

Com um plissado de respeito na cara, a tia pode até consultar os universitários, mas nunca foi uma otimista desse tanto. Aliás, já leu em algum lugar e concorda que “o otimista é um pessimista sem muita experiência”.

 

Maria Solange Amado Ladeira – 03/07/2023

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