Um garotinho sem infância
Solange Amado
Ratátátá! O garotinho sudanês, aparentando mais ou menos 7
anos, miúdo e faminto, arrastava uma kalashnikov 47 nas mãos, mais pesada do
que ele. E matava. A quem? Nem ele sabia direito. Era Emmanuel Jal, que se
tornou um rapper africano. E eu leio avidamente sua história.
O Sudão tem uma ditadura que mata, além de inúmeras etnias,
crenças, religiões, um monte de dialetos, fome e sede. Muito ódio e fanatismo.
E um mundo de riqueza embaixo da terra. Dividir para conquistar. Uma eterna
guerra.
Cada vez que a aldeia do garoto era invadida, metralhavam um
bocado de gente, saqueavam, estupravam as mulheres ou simplesmente matavam.
Ateavam fogo às choças e raptavam as criancinhas, mesmo as mais novas, para se
tornarem “meninos soldados”. Foi numa dessas que Emmanuel foi raptado por um
grupo e se tornou um “guerreiro”. Aquele eram o único referencial de homem que
ele tinha. E ele se tornou um deles.
O garotinho no entanto, era muito inteligente, e o destino
fez com que ele fosse adotado alguns anos depois. Um leão selvagem. Estudou sem
nenhuma disciplina para o aprendizado, mas conheceu a música. E foi em frente.
Vejo as suas fotos coloridas, com líderes africanos, Mandela inclusive. Um
rapaz que não cresceu muito devido à desnutrição e com um cabelo cor de palha que a fome
descoloriu.
Antes de chegar aos finalmentes da sua história, tive de
atravessar cerca de 350 páginas de puro sofrimento, dor, violência, ódio e
vingança. Fui fazendo pequenas pausas pra tomar fôlego, mas não consegui me
desgrudar daquela insanidade. Até acho que há uma caixinha de psicopatia dentro
de cada um de nós, com uma fechadura mambembe. Se forçar um pouco, vem o
estouro da boiada. A crueldade também atrai.
Então, fui desbravando no meio de uma guerra violenta e sem
sentido, a vida desse menininho inacreditável. Na vida pessoal, eu ruminava o
incômodo, mil vezes menor, de estar sem computador há duas semanas e o fato de
o técnico estar me dando tantos bolos que eu poderia montar uma festa infantil.
Embora as situações não possam nunca ser comparadas, eu podia entender um
bilionésimo da frustração e a raiva do garoto nessa vida, mas eu nunca tive uma
AK 47. Me limitei a ficar putzgrila da vida contra as injustiças do mundo, contra
os técnicos de computador em geral e fui em frente engolindo as páginas do
livro. Parar de ler não é uma alternativa.
E sem mais delongas, embora tenha me calado fundo na alma o
drama desse e de outros meninos sudaneses num país sem infância, um episódio me
chamou a atenção: De vez em quando, a ONU enviava por helicópteros, voluntários
pra trabalhar nas aldeias, com grandes caixas de alimentos e medicamentos. Rapidamente, os voluntários armavam grandes
barracas, faziam comida e distribuíam diariamente, alimentando filas
intermináveis de gente meio morta de fome. E ficavam por alí um tempo. Não eram
atacados porque não se metiam nas pendengas políticas e traziam comida e
assistência médica. Os guerrilheiros não matariam a galinha dos ovos de ouro.
Ninguém no meio daquelas aldeias jamais havia visto uma
pessoa branca, olhos azuis, cabelos loiros. E aquelas mulheres usavam calça! E
ainda falavam uma língua estranha que ninguém entendia. Verdadeiros ETs.
Ficaram sendo os “albinos”. Eles conheciam negros albinos.
Certo dia os garotinhos combinaram acompanhar uma mulher
branca que saia de uma das barracas de manhã, pra ver se elas se aliviavam do
mesmo jeito que uma mulher negra. Nunca se sabe.
A mulher se embrenhou no matagal. A criançada sorrateira
atrás, deitados no mato. A mulher se agachou. Os garotos botaram reparo na
anatomia. Repararam o xixi e o cocô. Tudo igual. Tirante a língua, não havia
nada de diferente naquelas “albinas”. Foi um enorme achado.
Aqueles garotinhos sudaneses perceberam algo que nós, mais
sabidos e civilizados não percebemos. Por mais que queiram nos dividir entre
heteros, bi, tri, etc, negros, brancos, amarelos, ricos e pobres, sábios e
idiotas, cultos e ignorantes. Por mais que queiram abrir um abismo entre nós
humanos, a merda é a mesma. E ela nos iguala.
Maria Solange Amado Ladeira 07/08/2023
www.versiprosear.blogspot.com.br
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