A honestidade respira por aparelhos
Solange Amado
Já acordou assim: não muito benta. Mato ou não mato? A vítima
permanecia encurralada num canto, cheia de pavor. A velha titubeou, mas
resolveu aliviar. Deixou-a ir embora. Não por misericórdia, mas por nojo. Pisar
na cabeça da bichinha, além de sujar seus sapatos, vai que, no desespero, num
gesto precipitado de fuga, aquela coisa poderia pular nas suas pernas. Já
bastava aquele berro histérico quando ao abrir a porta deu de cara com aquele
filhotinho de lagartixa desgarrado. Aquele pingo de gente assim solta na
véspera do “dia das Mães”, nem devia ter sido desmamada, se é que lagartixa já
mamou algum dia.
Apesar de saber que ela representava perigo zero, não tinha
nenhum problema de consciência. Coração duro, não era fácil se emocionar. Vai
que a bichona se enfia debaixo das suas cobertas e passeia pelo seu corpo
desavisado, adormecido. Dá gastura. Vai que ela se esconde em algum desvão de
suas avantajadas protuberâncias, ou de sua alma? O que seria pior. Numa hora em
que o mundo está desgovernado, lagartixas na alma não são uma boa pedida.
Claro, talvez esteja precisando de cócegas no ego. Todo mundo
precisa, mesmo que não admita. Ninguém admite que é único. E que,
frequentemente precisa dar uma banana para o mundo pra ser ele mesmo. É preciso
sempre fingir que é bonzinho pra ser aprovado pelo bando. Vai jogando pra
plateia. Só embalagem. O conteúdo fica pra inglês ver. Bom, sob esse ponto de
vista, ela concede, cócegas no ego, nas atuais circunstâncias, pode funcionar.
E aí ela sai para as compras. Primeiro na farmácia. O remédio
era pra ser tomado durante um mês “um comprimido por dia sem falta”. Preço
salgado. Pois bem, a caixinha contém 28 comprimidos; só para obrigá-la a
comprar mais uma caixa e completar os 30. Sacanagem pura. Agora, vamos à
padaria onde compra suas bolachinhas preferidas. O pacote tem o mesmo tamanho,
mas emagreceu. Parece uma salsicha. O cara garante que a quantidade é a
mesma. Ela não acredita. Tecnicamente
impossível. Bingo! Só dá pra preencher metade do vidro que tem em casa, quando
antes o preenchia inteiro. Ah! Mas tem as barrinhas de cereal: o tamanho da
embalagem é o mesmo, mas a barrinha encolheu, parece aqueles homens de bundinha
chupada que não preenchem devidamente as calças. Sempre sobra pano. E o que
dizer do papel higiênico? A embalagem diz que tem 30 metros. Se tiver a coragem
de medir, não tem nem 20. Não dura nada. Ou isso ou tá todo mundo obrando mais.
Logo na hora em que a sujeira no país requer muito papel higiênico!
Ela foi roubada tantas vezes num espaço de tempo tão curto,
que matar uma lagartixa não é nenhum assassinato digno de nota. Afinal, ela
invadiu o seu domicílio. Além disso, é normal no ser humano jogar a culpa em
alguém por qualquer mal-estar na civilização. É libertador. Nem que esse alguém seja uma lagartixa (é até
bom que seja uma!). O ser humano não tem remédio. Devia ter matado a danada, só
de raiva.
E vai daí que no mesmo dia, nossa heroína esquece a carteira
num táxi, com 600 reais dentro. Caracas! Reza pra são Longuinho. Dá três
pulinhos, mas é experiente o bastante pra saber que é caso perdido nesse país
confiável, Além disso, não se lembra da placa do carro, nem da cara do
motorista, Pegou-o na correria, na porta de casa quando alguém desembarcava. E
agora, José? Só deu pelo fato horas depois.
Adeus grana! Devia ter matado a lagartixa lazarenta! Chora as
pitangas com o porteiro e lamenta sua malfadada sina. É quando a bendita
criatura lhe diz: “Uai! Um chofer de táxi apareceu aqui hoje, disse que pegou
uma senhora, ainda jovem (sic!), de cabelos curtos (e memória fraca), aqui nesse endereço e ela
esqueceu a carteira com dinheiro no seu táxi. Não consegui saber que senhora
jovem era essa (sem comentários...). Ele deixou um numero de telefone”.
Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! A humanidade não está
de todo perdida! O gajo não aceitou nenhuma recompensa: “Não dona. É minha
obrigação. Não é meu!”.
Acreditem se quiser, o milagre aconteceu na pessoa de um
taxista baixinho e franzino. Ainda bem que ela não matou a lagartixa. A
honestidade, mesmo respirando por aparelhos, ainda resiste! Amém.
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Maria Solange Amado Ladeira 04/05/2021
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