De fanáticos e poetas
Solange Amado
Alma de poeta. Tinha coleções de livros de poemas, que
adorava. Excelente pai, bom marido, amoroso e gentil. Reunia os filhos e lia
poemas para eles com frequência. Poemas doces
e líricos. Preocupava-se em aprimorar o espírito das suas crianças.
E nos intervalos, matava. Matava homens, mulheres e outras
crianças, tão lindas e tão suaves quanto as suas. Até bolou uma forma de
matá-las aos montões, enfiando tudo em câmaras de gás, que supostamente, fariam
o serviço sujo em poucos minutos, com uma
“chuveirada” de zyklon B. Alguém limpava a porcaria e ele ia para o seu
almoço e seus poemas líricos. Alma gentil que era.
Pois é. Esse era Rudolf Höss, braço direito de Hitler, carrasco
nazista dos mais ferozes e fanáticos, encarregado da “solução final para o
problema judaico”.
Difícil entender essa dicotomia chamada fanatismo. Após a
guerra, ao ser preso e julgado em Nüremberg; durante o seu interrogatório, foi
questionado sobre em que, afinal, consistia o nacional-socialismo. E a resposta
boquiabriu seus interrogadores: “consiste em cumprir as ordens do Führer”.
Simples assim. Seu mestre mandou, faremos todos, faremos todos, faremos todos.
Já vi esse filme, aliás, todos já vimos . E vemos todos os dias.
Não adianta confrontar as criaturas com o óbvio. Sua
faxineira tem um mantra:”tá na Bibra”. Não pode cortar o cabelo, usar brincos,
calça comprida, e vai por aí, numa lista interminável. Por que? Porque tá na
“Bibra”. Onde, na Bíblia? “Não sei, mas o pastor disse e ele sabe”. Fim de
papo. O “Mein Kampf” dela é a Bíblia, e o führer é o pastor.
Pensar cansa. Pensar dá trabalho. Refletir é um porre. Fazer
poemas, escrever textos, supostamente deveriam nos fornecer os utensílios
necessários para resistir a esse mantra do “tá na Bibra”. Paradoxalmente, não é
esse o caso.
A camisa de força de ideologias de esquerda ou de direita faz
um torniquete em torno da nossa cachola. E vamos em frente cumprindo a vontade
do führer. Mesmo nós, que temos um caso de amor com as palavras, ignoramos o
fato de que, a linguagem, se verdadeira, é revolucionária.
Favas contadas, é isso. Vai lendo sobre Rudolf Höss. Ela quer
fazer um poema. E se recusa. Uma onda ácida lhe invade a boca à medida que as
palavras vão brotando.
O que a separa de Höss?Ela nunca matou ninguém e nunca teve
um guru. Não lê pela cartilha de ninguém. Mas escreve. Escreve para não se
chafurdar na lama.
Tudo bem. Todo mundo, às vezes, tem de tomar distância do
horror, pra manter a sanidade.
Mas hoje não. Hoje o cheiro tá muito forte, Tem muita coisa
de podre no reino da Dinamarca. Não dá pra falar que é primavera e que o cheiro
no ar é de flores. Mas o poeta é um fingidor. E não é essa a sua tarefa?
De qualquer maneira, ela não vai falar de flores. Vai só
deixar o recado de Fernando Pessoa:
“Não digas nada!
Não, nem a
verdade!
Há tanta
suavidade
Em nada
dizer
E tudo se
entender!
Tudo metade
De sentir e
de ver.
Não digas
nada!
Deixa
esquecer...”
Maria
Solange Amado Ladeira 25/09/2018
www.versiprosear.blogspot.com.br
Pode tirar Dinamarca e colocar no reino do Brasil ... bem escancarado kkkk.... Fernando Pessoa para suavizar e nos dar esperança, né... Amei Solange!
ResponderExcluirObrigadaço pela força. Que bom que gostou! A coisa tá mesmo brava, né?? Beijos
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