Pavras afiadas



Palavras afiadas
Solange Amado

Ela tem um certo receio de dormir sozinha. Então, toda noite coloca embaixo do travesseiro, palavras afiadas que nem facas. Com essa arma ela se protege do vazio da existência. E dos fantasmas que rondam no escuro. Nunca se sabe quando vai ter de usá-las.
Não é assim tão fácil. Incomoda um pouco. Um objeto cortante embaixo do travesseiro, às vezes machuca. Mas seria muito perigoso enfrentar a noite assim de peito aberto, sem  uma rede protetora, um disfarce, um tecido camuflado. Porque é disso que se trata.
As palavras velam e desvelam. É para isso que servem. A moça imagina o perigo do vazio, precisa se proteger dele, mas precisa desse perigo imaginado, ou as palavras seriam inúteis. E esse inútil-útil das palavras, esse cobre-descobre, esse veste-despe da escrita é que dá todo o tesão. E é nessa espetada das palavras sob o travesseiro, que a dor vira gozo.
Porque a moça sabe que as palavras não são só aço afiado, aquilo que corta, são também penas, que pairam levemente no ar, com extrema doçura. Em ambos os casos, elas meio que escapam ao seu controle. Elas são condição de a moça existir.
Escrever é o trabalho mais vagabundo que existe. As palavras estão aí, prostitutas se oferecendo pelas esquinas do desejo. A gente vai lá e negocia. Mas elas cobram caro e são escorregadias. Quem disse que prostitutas têm vida fácil?
E  essa existência vagabunda é que faz com que elas se agrupem em um texto, às vezes meio chucro, espinhento que nem cactus. É isso que faz as almas muito delicadas torcerem o nariz. Não percebem que no meio dos cactus saem flores belissimas. E água fresca. Lá dentro é só delicadeza. Os espinhos são só um aviso: limpem os pés, deixem a frescura lá fora, que a vida é luta renhida.
Assim são as palavras da moça. Animais grandes, cavalos selvagens. Mas quando ela pega as rédeas e mostra a que veio, elas seguem dóceis e amorosas num trote elegante, ou em disparada, só fogo e fúria, arrastando um desejo indomável. Mas não se iludam, a batuta, quem tem nas mãos é a moça. É ela que dá o tom. E conduz. Não é a força, é o jeito.
Deus me livre de palavras comportadas, em filas. Deus me livre de palavras que pastam eternamente no ramerrão de uma tarde morna. Deus me livre de palavras sem direção, rebeldes sem causa e Deus me livre de palavras guardadas avaramente em cofres lacrados, mortas, mortas, mortas. É preciso gastar as palavras, dividi-las, dar liberdade a elas de viver. Nem que for assim pra uso doméstico, entre família e amigos. Nem que for pra serem espalhadas no chão gretado, lá pros lados de Cabrobó, já que palavra também é cactus, e dentro tem água fresca. Alguma língua sedenta vai tirar proveito.
Mas a moça acorda. Sonho ou pesadelo? Ela espia embaixo do travesseiro. O turno da noite acabou. Nenhuma palavra ficou esquecida entre os lençóis ou debaixo do travesseiro. A folha de papel continua vazia, esperando.
Pois é. Sem cavalo preto que fuja a galope, e agora, Drummond?



Maria Solange Amado Ladeira    -     04/09/2018   -
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