Normalidade
Solange Amado
OK Doutor. Não olhe pra mim desse jeito. Sei o que está
pensando. É o que todos pensam de mim: que eu não bato bem dos pinos. É isso.
Eu concordo. Não bato mesmo. É por isso que o diretor e minha família me
mandaram pra cá. Para um médico de cabeça.
Na verdade, não me importo muito que pensem assim. Sempre
nadei contra a corrente. Não me enquadro muito dentro do que você chamaria de
“normal”. Tô me lixando! Só não quero perder meu emprego. Sou professor, sabe,
não me vejo preso num escritório, lidando com papéis e números. Sempre fui
assim, meio esquisito. Digamos que eu seja um professor fora dos esquadros. Os
alunos me acham bem legal. Mas a direção da escola, obviamente, acha que sou
uma dor de cabeça permanente. Acha que minhas ideias são meio malucas. Pode
ser, mas a culpa é delas.
Quem? Ora, elas, as vozes. Eu ouço vozes, Doutor Cabeça. É a
primeira vez que conto para alguém. Resolvi que vou jogar bem limpo. Alea jacta
est! Vou botar as cartas na mesa. E você vai resolver se represento algum
perigo para a sociedade. As pessoas acham assim, se a gente não dança conforme
a música delas.
O que elas dizem? Sei lá! Coisas. Às vezes ficam bravas, são
desaforadas, irônicas. Me mandam agir assim ou assado. Estão sempre vigilantes.
De vez em quando me incomodam, porque são invasivas. E se eu não obedeço, elas
ficam no meu pé até quando estou dormindo. E eu tenho que me render.
Não. Elas nunca me mandaram fazer coisas violentas. Eu até
posso ser, mas minhas vozes não são malucas. Acho até que elas são mais normais
do que eu. Às vezes elas tentam me sossegar quando tenho vontade de apertar o
pescoço de alguém, aí, elas me sugerem algo alternativo. E são essas coisas
alternativas que fazem com que as pessoas me achem esquisito. Não sabem da missa
a metade!
Não sei, doutor. Acho que as vozes saem do meu umbigo. À
noite quando apago a luz, eu as ouço cochichando e planejando sair pelo
“buraquinho” da barriga. Pode ser que o vazamento esteja aí.
Se eu converso com elas? Claro! Todos os dias. As pessoas
chamam isso de “falar sozinho”. Não é. Vai me dizer que o senhor não fala
também? Não discute, não se zanga, não
briga com elas? A diferença é que, talvez, você não o faça em voz alta. Nem
pode. Com essa gravata apertando o seu gogó... Pois minha gravata são as
convenções sociais – não é correto fazer isso ou aquilo. Não dou bola. Os cães
latem e a caravana passa.
Pra decidir se alguém é biruta, você tem de ser um paradigma
da normalidade. E eu pergunto: o que é a normalidade?
A criatividade certamente não é normal. Ninguém cria seguindo
a trajetória do mesmo. A criação vive da marginalidade, das entrelinhas, do que
foge ao convencional. A criatividade, certamente, não segue a manada. Tem voz
própria. E você sabe, nos dias de hoje, quando é moda pensar pela cabeça dos
outros, é pecado mortal ser criativo. As igrejinhas exorcizam.
Não sei se todo louco é criativo. Mas é certo que o criativo
é um louco. Não sei se todos eles ouvem vozes. Mas certamente, fazem a
diferença.
Não o invejo, doutor. Você vai ter de bancar Deus, decidindo
se sou louco ou criativo. Se represento um perigo para a sociedade ou se posso
ser uma alternativa à mesmice do discurso gagá que estamos vivendo: “devemos
levar a humanidade à felicidade a qualquer preço”. Pois eu prefiro viver
infeliz às minhas custas.
Boa sorte, doutor. Você vai ter de conversar muito com as
suas vozes; Como já disse Hanna Arendt, “chegou a hora da verdade. Agora tudo
se reduz a salsicha”.
Maria Solange Amado Ladeira
- 02/10/2018
www.versiprosear.blogspot.com.br
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