Postado em 07/05/2016
Presentes de grego
Solange Amado
Não era minha intenção misturar alhos com bugalhos. Mas
durante a noite, as palavras aproveitam meu sono desavisado e botam pernas no
mundo. Gostam dessa liberdade. Pela manhã, chamo de volta. Mas não há jeito.
Elas brincam de cabo de guerra. Puxo para um lado. Elas puxam para o outro.
Desisto. Sempre foi assim. Eu não escrevo. Elas me escrevem. Vou seguindo a
picada que elas abrem na floresta da vida. E a vida é caprichosa comigo. Vou
dando nó em pingo d’água pra acompanhar essa toada de existir.
Dito isso, tenho feito das tripas coração para ser normal,
mas remar contra a corrente exige manobras radicais. Daí usar soluções assim
meio fora do prumo para alguns presentes de grego. Vejamos:
Minha amiga me traz de viagem um “enfeite de casa” que,
conforme diz, “é a minha cara”. Desembrulho a coisa e ela se mostra em toda a
sua horripilante feiura. Me sinto ofendida. Sei que nunca fui lá essas coisas
em matéria de beleza, mas me comparar àquela geringonça desestabiliza a minha
autoestima. Mesmo assim, agradeço e boto a “minha cara” em local nobre. Tudo
pra inglês ver. Quando ela sai, escondo a coisa atrás de um vaso. Quando ela
aparece, a coisa volta ao seu lugar. O objeto fica intermitente por alguns meses.
Vez em quando eu me esquecia de tirar a coisa do esconderijo atrás do vaso. Ela
me cobrava e eu punha a culpa na minha faxineira. Até que me cansei desse jogo
de gato e rato. Propus à faxineira sumir com aquele objeto e contar pra minha
amiga que o quebrou (as duas batem altos papos). Ela não topou: “mentir é
pecado”. Ofereço uma propina substancial que operou o milagre. Ela pecou. Com
uma excelente performance. Diga-se de passagem. Deu certo.
Segundo capítulo: Meu amigo tem uma casa cheia de tapetes persas,
pratas, cristais e quadros valiosos; relíquias de família que ele protege com
uma fúria titânica. Até aí, tudo bem. Não é pecado. O que me implica é que a
casa está virando um museu. Não é uma casa viva, onde as coisas respiram. Nada
é usado. Tudo fica guardado a sete chaves e ele vive com medo de morrer e a
família vender por preço de banana as suas preciosidades. Na última reunião,
alguém deixou cair vinho no seu tapete persa, e ele teve um ataque de pânico.
Foi aí que eu, muito bocuda, passei-lhe uma carraspana: onde já se viu um morto
ficar preocupado com um monte de quinquilharias terrenas enquanto os vermes se
banqueteiam com suas carnes? Melhor botar em uso ou distribuir a coisarada
enquanto é tempo, e viver de forma mais leve. E fui por aí, nessa toada.
Bem feito pra minha língua grande! Dia desses, ele me aparece
em casa com um presente. Um vaso de cristal que foi da mãe, da avó, da bisavó,
da tataravó, 100 anos atravessando a família. E agora, eu tenho a subida honra
de ser a nova proprietária. Fico comovida, mas olho a geringonça e nós nos
antipatizamos instantaneamente. Defunto muito recomendado. Rosa e azul, a coisa
parece uma perna com varizes. Boto em cima da cristaleira com muito cuidado.
De noite, recebo a visita de um casal de primos. Conto a
história. A mulher pergunta: “Posso ver de perto?” “Claro”, respondo. Ela pega
a peça com infinitos cuidados, tropeça no tapete e a coisa se parte em mil
pedaços. Resistiu 100 anos na família do meu amigo, nem 5 horas quando passa
para a minha.
Acho que é minha sina. Na minha casa de 6 crianças, nunca
tivemos um aparelho de jantar inteiro. Nada resistia à nossa sanha. As xícaras
da mais fina porcelana logo ficavam sem pires e sem asa. Até hoje, nossa coordenação motora é
duvidosa. Somos grandes trapalhões. Nada a fazer, já estou acostumada. Mas meu
amigo não. Tenho medo de ele ter um infarto. Tenho medo de que a nossa amizade
também se desfaça em mil pedaços. Tenho medo.
Meu vaso agora, parece o coliseu romano. Uma parede ainda
resistiu em pé. Botei no fundo da cristaleira, construí uma barreira de cálices
em volta, num arremedo de tapume mambembe e ando rezando muito para que meu
amigo não bote reparo nessa construção periclitante.
Além disso, estou preparando uma nova propina para minha
faxineira. Deus me perdoe, mas vou ter de convencê-la a pecar de novo. Quando o
inverno chegar. Até lá, preciso de todo apoio moral pra enfrentar mais esse
presente de grego.
Maria Solange Amado Ladeira
22/03/2016
www.versiprosear.blogspot.com.br
Sol, ótima crônica. Só fiquei um pouco preocupado com sua faxineira. Mal acostumada com tanta propina, vai que ela resolve entrar na política. Não vai ter Lava Jato que dê conta. Abraço. Etelvaldo
ResponderExcluirCertamente ela vai dar umas bengaladas no dono do posto aqui perto de casa!!! Rsrsrs
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