Postado em 05/05/2016
Esporte Radical
Solange Amado
Tenho pouca paciência. Um grande defeito. Mas desde que nasci
me conheço assim, puxando a minha coleira: senta! Senta! Quando lá dentro rosna
uma vontade de me atirar no pescoço das palavras. Eu sei. É péssima política.
As palavras não gostam de quem pega no pé. O fato é que eu sempre quero
controlar a viagem delas. No frigir dos ovos, não consigo controlar nem a mim
mesma. Fico só brigando com o cão bravio que me habita, e ele me vence sempre.
Mesmo assim, não deponho as armas. Minha
palavra é minha espada. Mas além dessa frase de efeito, a coisa em si não tem
nada de dramático. Frequentemente, a espada tá meio enferrujada, e quando eu
mais preciso, ela negaceia. Não corta nem mousse de maracujá. Outra hora, a
falta de jeito é minha. Manuseio a espada com pouca coordenação. Fazer o quê?
Isso é genético.
De qualquer maneira, as palavras só funcionam assim meio na
bambeza. Tudo muito bagunçado. Não obstante o cachorro rosnante dentro de mim,
querendo morder quem sair da linha, as meninas se espalham sem cerimonia. Sou
mais lenta do que elas. A idade não me permite maior agilidade. Elas sabem
disso. E tiram sarro. Se esbaldam. Vou indo em velocidade de cruzeiro. Fórmula
1 só quando pego carona com elas.
Só tem uma vantagem nisso tudo: A culpa não é minha.
Vantagenzinha pífia, é verdade, mas é um álibi gordo. Tenho habeas corpus
preventivo. Estou cheia de cautela e boas intenções, mas forças ocultas
interferem. Falei claro? Então vamos ao que interessa.
Às vezes, só tenho palavras desvitalizadas. Tento cutucar,
levantar o astral, mas esse é um momento em que elas se fecham numa nostalgia
toda particular que eu não alcanço. Andam na ponta dos pés. Às vezes é assim
entre nós. Fico com gosto de cabo de guarda chuva na boca. Quando isso
acontece, pego o meu boné e bato humildemente em retirada. Mas há dias também,
em que tenho que concordar com Adélia Prado, “a coisa pede para ser escrita”. A
coisa, o negócio, aquele trem que fica se remexendo dentro da gente, querendo
botar o pé no mundo. E nesses dias, que eu não diria que são raros, eu até
discordo dessa delicadeza de “pedir”. A coisa não pede. Exige. A coisa, pelo
menos a minha coisa, não é assim tão delicada. Nunca pede licença. Nunca vem de
sandália ou num elegante salto alto. Vem de botina mesmo. Pronta pra um chute
no traseiro. E eu, que nunca fui fã de 50 tons de rosa, gosto disso. Gosto
dessa força, dessa energia, desse tsunami que invade minhas entranhas. Gosto
dessa coisa, no dizer do escritor Ronald Claver, “visceral, orgânica, chama,
fogo, fagulha e flecha, algo colado à pele”.
É por isso que escrevo. Porque não posso fugir dessa escrita.
Porque não respiro se resistir à força dessas águas. Tenho de abrir as
comportas e deixar que as palavras escoem num galope nada comedido. Escrever é
um esporte radical. Pelo menos para mim. Adrenalina pura. Nenhuma garantia.
Perigo de colisão. Monto o corcel das palavras. E ele dispara. Tento mantê-lo
sob controle, mas não tenho certeza se posso botar rédeas na paixão. E nem
quero. Sei disso. Eu fustigo, provoco esse corcel. Para estar viva, tenho de
morrer, de me perder nessa disparada.
Então, se largar a mão, salve-se quem puder. Cavalgando nessa
velocidade incontrolável, tenho medo de não poder parar. Qualquer dia, o cavalo
desembesta e só me resta gritar aos que surgem no caminho: Saiam da frente!
Saiam da frente! Não estou mais no comando. Já estive um dia?
Maria Solange Amado Ladeira 05/03/2016
www.versiprosear.blogspot.com.br

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