Solange Amado
A tia está precisando de uma receita eficiente contra as
dores e os esquecimentos da veiêra. Para Marquês de Pombal foram receitados
leite de burra e caldo de víbora. Acho que deu certo porque ele morreu. É a sua
esperança.
No mais, ela não anda acertando uma. Ontem, foi à gaveta de remédios e pegou
um vidro novo de colírio, seu mais novo divertimento. O interfone toca. Ela
atende. Tem uns quinze anos que ela e o porteiro empreendem um diálogo de
surdos através do fio.
- “Tem uma encomenda aqui, do Tião”.
- “Não. Dessa vez não vou participar do bolão.
- “Dona Tereza está subindo o elevador”.
-“Prato de sobremesa? Pode deixar que eu pego depois. Não
precisa botar no elevador”.
E lá vamos nós cheios de “heins?”, “Como?”, “O que?”
Vidrinho de colírio na mão, já que está mesmo em frente ao
armário, aproveita pra pegar um prato. A campainha toca. Fecha o armário. É a
D. Tereza (e o prato de sobremesa que o porteiro aproveitou pra entregar).
Conversa vai, conversa vem, é hora do colírio. Ele se escafedeu. Procura por
todo lado: dentro da geladeira, do forno, debaixo da cama. Desiste.
O dia lá vai indo. Limpa cuidadosamente a pia da cozinha,
fecha o lixinho numa sacola plástica que vai levar para o contêiner no
corredor. Dá pela falta do ralinho da pia. Tem um sobressalente, mas não lembra
onde guardou.
Sem colírio e sem ralinho de pia, resolveu sair pra comprar.
Ninguém pode viver sem esses artefatos depois que a idade assenta praça.
Ainda bem que mora no meio da muvuca, como diz sua faxineira.
Tem de “um tudo”. É vapt-vupt. Além do remédio na farmácia em frente, compra
ralinhos: pequeno, médio e grande. Afinal, tem outros buracos com precisão de tampar. De quebra, compra um pano de prato de
Papai Noel que o Natal se anuncia, e se lembra de que seu abridor de vinhos
quebrou. Meio caro, mas comprou outro. A moça fez um belo embrulho de presente.
Ela pegou os pacotes e bateu em retirada.
Ao chegar em casa, abriu o armário pra guardar o abridor e ói
lá o colírio bem à vista brilhando entre os pratos, além de um abridor novo que
comprou há alguns meses e a memória não registrou. O outro ficou embrulhadinho
pra presente.
Volta à cozinha e o saco plástico com o lixinho ainda está na
pia. Na agitação acabou se esquecendo de levar para fora. O bom é que o ralinho
de pia estava lá dentro glorioso.
É melhor não ficar pensando o pior. Resolve fazer seu filho único em termos
culinários: o pão de banana. Bota no forno e vai ler um livro que é um remédio
supimpa.
Mergulha em outra galáxia, a tempo de queimar ligeiramente o
pão. Tá seco e duro, mas comível. Sua mãe tinha um ditado: “pra quem é,
bacalhau basta”. Melhor não exigir muito.
É isso. Sua esperança é o leite de burra e o caldo de víbora.
Os ingredientes são fáceis de achar, só não sabe se fazem efeito.
No mais, podem deixar sua opinião nos comentários, antes que
aquele alemão alto e loiro engula a tia com picanha e cerveja.
Maria Solange Amado Ladeira 12/01/2023
www.versiprosear.blogspot.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário