Abandono

Solange Amado

 

 

Ela desapareceu há mais ou menos 3 semanas. Não fiz nenhum alarde. Não acionei polícia, bombeiros, vizinhos porque ela já me aprontou dessas algumas vezes. É da sua natureza esse brincar de esconde-esconde.  Quando isso acontece, procuro me manter calma e esperar.

Relacionamentos a dois são pelejentos. Também já tive vontade de botar pernas no mundo e dar uma bela banana pra ela. Já me enrabichei por Freud como nunca. Almoçava, jantava, dormia e trabalhava com ele. Foi paixão de Elizabeth Taylor e Richard Burton. Um tsunami do qual a gente não se cura.

Lacan foi pior. Caminhamos juntos pelas estradas perigosas de muitos seminários, traduções e artigos. Mas aí, eu já tinha aprendido a aplicar umas verônicas nesse touro brabo. Ele vinha com fogo nas ventas e eu não me apavorava mais, girava a minha capa vermelha e ele se esborrachava na arena. Aprendi a lidar com ele. Ou com eles, se quiserem assim.

Com ela não. Porque não é uma troca. É dependência total. Não tenho voz ativa. Seria mais simples se eu pudesse agarrá-la, derrubá-la no tatame no primeiro round. Tava tudo dominado! Mas a lazarenta é escorregadia. Ele se amarra no mastro e resiste ao canto da sereia.

Tudo bem que de sereia passo ao largo. E meu canto e encantos não andam convencendo nem a mãe da coruja, cujo gosto estético está bem abaixo da crítica.

O negócio é que agora ela já está passando dos limites. Nunca esteve fora um tempo tão comprido sem notícias.

Me sinto traída. Me lembro das noites em que dormíamos de conchinha em perfeita harmonia. Ela não me traia.  Até disse um dia que nossa união era uma lei imutável. Acreditei, embora já tenha lido outrora, que quanto menos soubermos como são feitas as salsichas e as leis, melhor vamos dormir. Então, dormíamos.

Acontece que recentemente, aprendi como são feitas as salsichas, e as leis, estamos tendo cursos intensivos todos os dias.

Bobagem. Paixão não obedece a nenhuma lei. E está mais pra salsicha. Os ingredientes são impublicáveis, mas a gente mergulha neles com fé.

Pois ainda não bati o martelo. Ainda espero. Ainda confio. Ainda não dei o passo final. Porque ela existe. Em algum lugar ela está dormindo de conchinha com alguém. Talvez esteja cansada de mim.

Mas eu não desisto porque, tirante livros e canetas que empresto, tudo volta. E você... Ah! INSPIRACÃO. Você há de voltar!

 

Maria Solange Amado Ladeira                                                  29/03/2025

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