Pafunça

 


Pafunça

Solange Amado

 

“Ah! Pafunça! Que pena Pafunça, que a nossa amizade virou bagunça”.

Claro que ela não se chamava Pafunça. Mas eu podia chama-la assim. A gente inventava nomes exdrúxulos. Coisas  ridículas que a amizade e o amor permitiam. Em compensação, ela me chamava de Daodece Maria. Com nome, sobrenome e o Maria que me implicava. A gente achava a maior graça nessas bobagens.

De vez em sempre, beber a cervejinha nossa de cada dia, que ninguém é de ferro. Hoje eu me encontrei com o garçom que nos atendia invariavelmente.  Ele perguntou por ela. Sempre recebe a mesma resposta, mas pergunta assim mesmo, como se não acreditasse. Tomávamos cerveja e embolávamos a vida. A mãe era uma só. Já que eu não tinha uma, adotei a dela. E viajávamos. Lembra-se da viagem a Santos? Sua sobrinha adolescente nos ciceroneando. No quinto dia ela depôs as armas: “Não vou mais sair com essas duas! Uma não pode ver uma livraria ou um sebo que embarafusta pra dentro daquela poeirada e ninguém a tira de lá, a outra não pode ver uma loja de montões. Corre pras araras de ofertas e fica caçando algo barato. Deus me livre! Isso se chama espírito de pobre. Quem nasce com ele tá ferrado! Definitivamente tô fora. Não me chamem pra esse programa de índio!”. Arrebitou o nariz, mudou, casou, foi morar entre os ricos. Num elegante endereço de Londres. E ficamos humildemente aqui, com nosso irremediável “espírito de pobre”. Até há pouco tempo nos recordávamos desse destempero com boas gargalhadas.  Até há pouco tempo.

Começou de mansinho. Custei a perceber. Porque não queria perceber. De início ela vinha à minha casa e esquecia o endereço. Um dia esqueceu o número do apartamento. O porteiro me interfonou pra avisar que, olhando pelas câmeras, minha amiga estava perdida pelos andares procurando se localizar. Saí ao seu encalço. E rimos. Um riso angustiado.

Um dia, indo para casa tomou o ônibus errado.Custou a se localizar. A memória indo pro brejo em toda a sua glória.

Cadê fulano? Morreu. Como assim? Quando? Ela foi namorada dele. E foi ao seu enterro. Mas esqueceu. Quando queria passar os fins de semana com ele, dizia que estava comigo. As mães zelavam muito pela honra das filhas e eu que me virasse. Não havia celular, nem zap, e às vezes os pombinhos sumiam. E agora, José? Mas as garotas eram criativas. E tudo acabava em boas gargalhadas e com a mãe fingindo que acreditava.

De repente, não podemos mais almoçar juntas, viajar juntas, tomar umas biritas, fofocar, chorar dores de cotovelo e andar pelas madrugadas com os amigos, arrastando as saias ao sabor da vida, pelo menos na memória.

Nesse meio tempo, casou, separou, viveu plenitudes e decepções. E era bom passar em revista tempos bons e ruins. Até que a memória foi se escafedendo devagar. “Quem é essa? “A Cida, sua vizinha”. Ainda rimos ocasionalmente. ”Quem é esse cara feio que conversava com você?” “Foi meu namorado. Você já o achava feio naquele tempo. Lembra-se?”. Não. Não se lembrava, mesmo assim, veio o comentário ferino: “Poxa, você tem mau gosto mesmo!”.

Vez em quando ainda nos divertimos. Ainda reconhece a minha voz ao telefone. Ainda tomamos um café ocasionalmente, ainda podemos nos abraçar, lamentar as caqueiras, as perdas e os ganhos muito esporádicos, mas a memória virou uma confusão. Nunca sei o que foi triturado pelo tempo. Nunca sei em qual terreno estou pisando.

Ah! Que pena Pafunça! Adoniran Barbosa que o diga, a nossa amizade virou bagunça!

 

 

 

 

Maria Solange Amado Ladeira         -    03/04/2023

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