Wanderlust
Solange Amado
Ele morreu ontem de manhã. Tudo bem. Morrem-se todos os dias.
E ele era bem frágil. Algo inevitável. Agora ela está assim, cansada,
nostálgica, culpada. A sensação de um vazio oceânico. Os que ficam se sentem
assim, abandonados, traídos, culpados. Até onde contribuíram com essa morte?
Até onde foi esse “nem te ligo” dela,
que fez ele entregar os pontos cedinho numa manhã radiante.
Ela aprendeu há muito, a erguer a cabeça, que a vida é
combate. Não obstante, os olhos se enchem de lágrimas, pra seu supremo vexame.
Lágrimas por um passsarinho! Que nem era íntimo dela. Vai ver é a fragilidade
da velhice, que vai fazendo das vivências um novelão mexicano.
Ele a visitava esporadicamente. Cedinho. Pousado no parapeito
da janela, encolhido do lado de fora do vidro. Frio comendo. E cantava seu
canto ali mesmo, quando o sol começava a espiar tímido o mundo . Diga-se de
passagem, o repertório era pífio. Coisa assim de “samba de uma nota só”. Mesma
melodia. Mas ainda assim, era delicado e meigo. Coisa de passarinho mesmo. Sem
notas dissonantes.
Tantas janelas e ela era a homenageada. Acabado o canto e o
quentinho de uma nesga de sol, lá ia ele alçando voo para lugar nenhum. Ela
nunca se lembrou de botar uma comidinha, uma água, de fazer um cafuné
esporádico. Será que ele sentiu essa indiferença? Será que poderia ter sobrevivido
se aquela alma empedernida se mostrasse mais sensível?
Não. Ela tenta se convencer. Ele nunca declarou
explicitamente o seu amor. E ela sempre foi cautelosa. Sempre evitou dar bom
dia a cavalo. Mas bom dia a passarinho seria um vexame menor. Podia ter se
arriscado. E essa culpa incomoda feito coceira de carrapato!
Alguém o matou, sem dúvida. Tinha uma pequena ferida na
cabeça. Um estilingue talvez. E ele não cantou ontem de manhã. Talvez tenha
vindo em busca de socorro. Ela não percebeu
com sua indiferença imperdoável. Ou quem sabe, veio só se despedir,
simples, humilde, no cantinho da janela. Sem alardes, sem exigências. Talvez
intuísse que, debaixo daquela couraça velha tinha alguma coisa macia e gentil,
que causa sofrimento: a frieza doce de um sorvete. Os passarinhos sabem. É só
quebrar o gelo.
Na verdade, a única palavra a ser dita em defesa da alma
confusa que habita o quarto do décimo primeiro andar, aquele, objeto de escolha
do passarinho nas suas manhãs cantantes, é que as boas intenções não
adiantariam mesmo. Domesticar o bichinho seria como roubar-lhe o canto, o
encanto das manhãs frias do outro lado do vidro.
A única coisa que consola é que os passarinhos, no dizer da
psiquiatra Nise da Silveira, (cujos objetos de amor, no entanto, eram os gatos),
os passarinhos têm uma “natureza borboleteante”, uma liberdade de
desorganização. A beleza é assim, a arte é assim, criatividade é assim. Os
passarinhos são assim.
Seja lá onde vá parar com sua melancolia , ela vai sobreviver
por aí, borboleteando sua liberdade de desorganização, sem máscaras, porque
também padece desse “wanderlust” alemão, esse prazer de vagar, como os
pássaros. No seu caso, pelas palavras. Tá valendo.
Maria Solange Amado Ladeira - 29/09/2021
www.versiprosear.blogspot.com.br
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