Dois amigos e uma inveja
Solange Amado
Eles voltaram. Mesma esquina, mesmo bate-estaca. Prosa
renovada em bronze. Desapareceram por uma largo tempo. Ficaram manetas.
Primeiro um, depois o outro. Devido à gravidade das lesões, acharam por bem
fazer uma cirurgia radical de recomposição. Foram para o CTI. A vizinha
duvidava do milagre da ressurreição. É uma mulher de pouca fé.
Admite que tem ciúme, inveja, preconceito de montão sob essa
desconfiança. A gente sofre de toda essa bobagem. É inconsciente. Talento
provoca essa devastação. Admiração e inveja. Mas como a vizinha não tem o
inconsciente a céu aberto, bota cabresto nesses sentimentos. Controla essa
desconfiança. É a única coisa que pode fazer.
Esses dois são o que os americanos chamam de “sweet talker” –
aquele que engana com palavras doces. Não é essa a própria definição do poeta?
E os dois são poetas. Ela é a vizinha invejosa que fica salivando naquela prosa
na esquina. Ela não tem essa capacidade de hipnotizar as pessoas com palavras
melodiosas, redondinhas. Fica só espiando de longe. Botando reparo em Carlos
Drummond de Andrade e Pedro Nava. Esses fedapês de sweet talkers que fizeram
música com as palavras e todo mundo caiu como patinho nesse canto de sereia.
Até a vizinha, que resistiu tanto.
Não obstante, ela cuida deles. Outro dia botaram uma máscara
na cara dos dois. Ela removeu cuidadosamente. Por que lacrar a boca de bons
poetas? Vai ver, o talento incomoda tanto que o jeito é emudecê-los.
Mas eis que estão aí, eternizados em bronze. Dá pra serrar as
mãos, pés, roubar o livro das mãos de Pedro, dá pra se perder de admiração, mas
não dá pra roubar a inspiração, amputar o talento de quem nasceu com ele. Ela
humildemente depõe as armas.
Só um poeta como CDA pra fazer de sua indignação esse primor
de poema cantando a sua terra torturada em “A montanha pulverizada”:
“... Esta
manhã acordo e
não a
encontro
britada em
milhões de lascas
deslizando em
correia transportadora
entupindo 150
vagões
no
trem-monstro de 5 locomotivas
- o trem
maior do mundo, tomem nota –
Foge minha serra,
vai deixando no meu corpo e na paisagem
mísero pó de ferro, e este não passa.”
E do seu lado, segurando carinhosamente o seu braço, na noite
que cai suavemente morna, ouço a voz de Pedro Nava recitando seu “Noturno de
Chopin”. Por sua vez, cantando a sua
terra no mineirês mais castiço. Amor e dor na mesma esquina.
“Eu fico todo
bestificado olhando a lua
Enquanto as mãos
brasileiras de você
Fazem fandango no
Chopin
Tem uma voz
gritando lá na rua:
Amendoim torrado
Tá cabano tá no
fim
Coitado do
Chopin! Tá acabando tá no fim...
Amor: a lua tá
doce lá fora
o vento tá doce
bulindo nas bananeiras
tá doce esse
aroma das noites mineiras
cheiro de
gigilim manga-rosa jasmim
os olhos de
você, amor...
o Chopin
divertido tá maxixe
meloso
gostoso
(os olhos de
você, amor...)
Correndo que nem
caldo
na calma da
noite belo horizonte”.
Maria Solange Amado Ladeira 19/03/2023
www.versiprosear.blogspot.com.br
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