Ninguém Segura

 

Ninguém segura

Solange Amado

 

Como nós estamos num mundo cheio de amor, saio de casa despreocupada. Abro o portão e piso na rua. Aí um morador de rua se aproxima com um cobertor sujo no ombro, cheirando a cachaça e me pede uma esmola. Digo que não tenho no momento e saio andando. Ele sai atrás aos berros: “Vai pro inferno, sua desgraçada! Leva pro caixão! Desgraça! Vou te matar! Vou te dar uma facada. Vou te dar um tiro!” Continuo em frente, aí ele grita: “Vou te decapitar!” Caramba! O cara foi fundo, até o século XVII, ou XVIII sei lá. Não imagino de onde ele tirou essa palavra. Ao voltar da rua, leio nas redes sociais que os franceses estão ameaçando decapitar o Macron. “Nós já decapitamos o Luis (com s) XVI!”  Taí de onde o gajo tirou seu vocabulário. Vou ter boa companhia no cadafalso.

Entro na farmácia. Na porta mais um encontro. Dessa vez o cara foi mais específico: queria dinheiro pra comprar um desodorante pra passar debaixo do braço, conforme explicou. Estava se sentindo um pouco fedido. Um pouco? Nem o legítimo Chanel número 5 daria conta. Um banho seria melhor pedida. Ele recusou a ideia. Só o desodorante mesmo consertaria as coisas. Não atendi ao pedido. Tanto fazia. Eu já estava com o pé atolado no fogo do inferno mesmo.

Subi a rua para novos compromissos. Na lanchonete da esquina um outro encontro. Encostada na parede, uma moça miudinha e pálida oferecia carnês do Minascap. Me pediu um lanche. Não tinha vendido nada desde cedo. Mal se sustentava em pé. Desta vez, meu coração empedernido balançou. Paguei-lhe um lanche e dei-lhe algum dinheiro. Gosto de pensar que no meu caminho para o inferno, mereci uma parada pro cafezinho.

Ao retornar à casa, dou de cara com um vizinho solteirão, que não vejo há dois ou três anos. A última vez que nos cruzamos na rua (cruzamos? Expressão infame!), ele estava acompanhado de um garoto gordinho de uns 7 ou 8 anos. Inflou o peito, apontou o garoto e disse: “Produção independente”.  E eu com isso?

Pois bem, o cara da “produção independente” não respondeu ao meu cumprimento, se encolheu no canto do elevador amedrontado com cara de poucos amigos. Na mão esquerda traz uma sacola de compras, na mão direita, um recipiente de plástico com álcool em gel. Borrifa o número do andar dele e aperta o botão; ao chegar ao andar dele, borrifa de novo a porta com álcool em gel e empurra. Sai rapidinho. Caracas! O dia tá brabo!

O casal vizinho discute. A mulher berra: “Eu já sei toda a verdade! Me diga só a verdade. Só aceito a verdade!”. Uai! Se já sabe a verdade, é chover no molhado. Melhor uma mentirinha fofa.

Pouco depois, meu amigo psiquiatra aparece para uma visitinha. Solto os cachorros: “Me diga, ou eu tô doida de pedra ou o mundo enlouqueceu de vez!” E ele calmamente: “Não se sinta tão especial! Tem birutices muito melhores do que as suas!”.

Tudo bem. Não devo ficar muito convencida. Minhas maluquices são fichinhas diante desse manicômio de mundo.

Mas ele é que não sabe que tenho enorme potencial. Para alguém que, além de filha é prima dos pais, que é prima dos irmãos, que além de neta é sobrinha dos avós, e vai por aí, se soltar a franga, ninguém segura.

 

 

 

 

Maria Solange Amado Ladeira                 13/04/1923

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