Que coincidência!
Solange Amado
Hoje a coisa
tá braba! A tia leu não sei aonde que viver é depender dos caprichos do nosso corpo. E o seu anda cheio deles.
Qualquer coisa ele se rebela, faz birra, empaca.
Em geral ela não bate de frente. Lá dentro da cachola, tico e
teco ainda conversam amigavelmente sem
dar muita bola para o que se passa na periferia desse corpo cansado. Mas hoje
tem pressa.
Toma um banho, bota um perfume. Senta-se com papel e caneta.
É domingo, tem um batizado em família. Bom se aviar. Antes porém, espera que as palavras caiam dóceis no
papel e cumpram a sua missão de formar uma crônica razoável, antes que Papai
Noel venha e encha o saco com os badulaques costumeiros.
Meia hora transcorre antes que tico e teco encontrem o
caminho das pedras. Como diria o cronista Humberto Werneck, a tia necessita
urgente de uma “lipoinspiração”. Vai ter de instilar um pouco de gordura nesses
neurônios depauperados pela pachorra dominical.
O tempo “ruge”, como leão faminto. Ela se preocupa. Meia hora
é pouco pra juntar palavras que façam sentido. Se ela vivesse de letras estaria
fulminada. Fica nervosa.
Tem precisão? Diria a avó. Não. Não tem. Mas a velhice se
irrita fácil. Melhor caçar rumo. Encontra um monte de mensagens no zap de
família: “Qual é a rua da Igreja?” “Tenho de botar no waze”. “Qual é a
paróquia?”. “Rua ou avenida?”.”O número?”.
Ela não sabe como, mas consegue chegar lá, não obstante.
A cerimônia já anda pela metade. O padre arenga, criancinhas
choram, mamadeiras passam de mão em mão. A tia se senta ao lado de sua
sobrinha-neta de seis anos. A garota está na maior estica. O pai severo no
banco de trás ameaça com as punições costumeiras caso o trem do comportamento
saia dos trilhos. A garota, um ferrinho de dentista nas perguntas afiadas,
coloca a bonequinha bem sentadinha a seu lado, faz recomendações de que não dê
um pio e atira a primeira pedra:
- “Tia, qual a diferença entre Igreja e Paróquia?” A tia não
sabe. Impossível pedir ajuda dos universitários. Então, inventa uma mentirinha.
A menina desconfiada, engole (na volta, a tia vai direto para o google. Vê que
improvisou errado. Mas ninguém precisa saber disso). A paz reina durante algum
tempo.
Lá na frente, o padre continua sua arenga sobre o quanto é
importante o batismo, etc. e tal. A menina cutuca a tia: “Você tem certeza de
que fui batizada?” Alívio. Já pode passar no vestibular para o céu.
Nesse momento, a boneca cai embaixo do banco da frente com a
bolsinha cheia de trequinhos.Toca o pessoal do banco a pescar boneca, bolsinha,
pentinhos, batons. “Ela está cansada”. A menina explica.
A paciência do pai no limite. O padre continua a arenga. Já
passou da hora do almoço. “Mamãe, tô com fome!” Sujou! Pensa a tia. Naquela Igreja ou Paróquia
enorme, nem sinal de comida. Mas bolsa de mãe esconde coisas insuspeitadas. Ela
saca de lá uma banana e resolve o problema.
Problema agora é a casca. Difícil, mas a garota encontra uma lixeira.
De qualquer maneira ela explica pra tia que a boneca está
“enjoadinha”, com fome e calor. O padre continua arengando e aí a “enjoadinha”
cai outra vez debaixo do banco de trás. A tia se oferece para passear um pouco
do lado de fora com a bonequinha para acalma-la, cuidando da bolsinha e dos
trequinhos.
Quando retorna, o desespero tomou conta da galera: a menina
sumiu! Todo mundo a procurar. Será que foi raptada? Essa mania de conversar com
todo mundo! Creindeuspai”.
A família se divide norte-sul-leste-oeste. A tia cobre o lado
de fora. Nem sinal. Foram minutos de pânico. Até que a pequena surge
saltitante. Aquele tiquinho de gente, de olhinhos pretos e vivos: “Uai, gente!
Eu fui fazer xixi”. Não é que a danada,
naquela Igreja ou Paróquia imensa descolou um banheiro?
Não parou por aí. Após o batizado, toda a família foi
comemorar em um restaurante. Ao entrar, ela viu uma mesa com algumas senhoras
que também foram ao batizado e que ela não conhece. Não teve dúvidas. “Eu vi
vocês. Por acaso não estavam na Igreja há pouco?” “Afirmativo” foi a resposta.
“Meu Deus! Mas que coincidência! Vieram para o mesmo restaurante!”
É então que a tia bota um ponto final nesse seu texto
lipoinspirado. Maior coincidência!”.
Maria Solange Amado Ladeira
22-11-22
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