Falta de assunto
Solange Amado
Alguém
disse um dia, que Rubem Braga era bom de
Escrita. Bastava ter um tema e ele metia bronca. Mas era melhor ainda quando
não havia assunto.
A tia estava modestamente alí: papel, caneta, que o
computador faleceu. A cadeira, a mesa e
um furinho na parede. Não tem assunto nenhum e nenhum parentesco com Rubem
Braga. Essa é a grande tragédia. O buraco não é só na parede. É na cachola
também. Isso é o mais brabo.
Claro, ela pode
cavucar mais um pouquinho e tirar água da pedra. Já fez isso, mas o buraco era
mais embaixo. Tinha só dez anos e uma professora de português perversa. Toda
semana botava uma pedra no caminho das redações para os alunos tropeçarem, que
nem Carlos Drummond de Andrade. Tentativa inútil. A turma tinha jogo de cintura
e o estoque de palavras era inesgotável. Ou pelo menos ela achava. Descobriu
que estava redondamente enganada.
Agora a coisa está preocupante. Quanto mais examina no embornal do seu cérebro não encontra um
crescimento muito grande de palavras. Vai ter de usar da criatividade pra
dispor no tabuleiro do papel seu modesto estoque.
A gaveta de palavras não tem lá mesmo um ativo muito grande,
mas isso nunca foi o mais importante. A
tia não se intimida. Quem morre de medo se enterra vivo. Então, é ir em frente.
Não é a quantidade, mas a qualidade. Tem gente pensando que se trocar um a
por um e vai mudar a face do
mundo. Bobagem, o buraquinho vai estar sempre lá.
Palavras não são papel higiênico que quanto mais merda se faz
no mundo, mais precisamos aumentar o estoque. A tia até que gosta de se prover
de fardos de papel higiênico, rolo grande, macio, folhas duplas. Quem dera que
fosse assim com palavras. Não é. Podem-se vesti-las com inúmeras roupagens. E
usá-las muitas vezes. Lado esquerdo e direito. Papel higiênico usa-se uma vez e
joga-se fora. Babau.
Aliás, palavras sobrevivem porque não tapam o buraco na
parede, porque não têm a pretensão de botar ordem no galinheiro. Não tem
nenhuma na prateleira esperando pra limpar a sujeira. Elas não têm compromisso.
Escrever levanta voo. O céu é o limite. Não é preciso estocar
palavras. É preciso deixar que elas
façam piruetas e pousem onde quiser. Se caírem em bocas de matildes, já
cumpriram o papel.
Palavra é que nem o
bando confuso, estropiado e improvável do cangaceiro Lampião:
“Pode tê
corpo de gente
Mas gente
mesmo não é
Acho até
que não nasceu
Das entranha
de muié”.
Palavra é assim. Nasce da aflição da hora, da precisão de
tampar o buraquinho da parede, da agonia da folha em branco. Palavra nasce.
Como boa mineira, a tia pergunta: “é fia de quem?”
Maria Solange Amado Ladeira 20/08/2022
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