Preguiça

 

 

Preguiça

Solange Amado

 

A tia anda em uma preguiça sacrossanta. Como tudo anda polarizado, faz-se mister dividir a preguiça como “do bem” e “do mal”. Ou como dizia Ariano Suassuna, como preguiça de Deus e preguiça do diabo. Ela não sabe direito como classificar essa sua preguicite. Mas sabe que é um desânimo do humano. Essa asnice em classificar os humanos em heróis de um lado e bandidos do outro. Ódio do bem e ódio do mal. O importante é que seja ódio.  Não adianta dizer que os humanos são bons E maus. Todo mundo tem de pegar em lanças e lutar contra os moinhos de vento.

A velha senhora anda botando reparo.  Seu vizinho da esquerda, um rapazinho engajado em diversas causas do bem; não obstante os containers de lixo no corredor sejam separados e com instruções claras: alimentos – plásticos – vidros, etc, ele despeja tudo num saco só, tudo junto e misturado ( eles lá que façam a  divisão). Sai sempre de casa, glorioso, com uma camiseta “salvem o planeta”. Fora disso, é muito simpático. A velha rabugenta que vá pra tonga da mironga!

No fim de semana, domingo, o único dia em que não se pode botar o lixo no lixo, ele sai do apartamento com um saco de Papai Noel tilintando de garrafas, restos de alimento e mau cheiro e vai deixando um rastro líquido pelo corredor. Deposita tudo no container maior, que é o mais perto da porta dela.

A velha tem vontade de pegar seu rocinante, sua armadura, sua espada, seu fiel escudeiro Sancho Pança e cortar a cabeça do vizinho, já que as câmeras que vigiam o pedaço são seletivas. O garoto dá suas camisetas velhas pontualmente para os faxineiros. A velhota não usa camisetas. Pena.

Ontem mesmo ela viu um dos faxineiros com uma camiseta “Por um oceano sem lixo”. Não é difícil saber de onde brotou essa camiseta. Desconfia até que nosso herói tem uma fabriqueta própria. Pra acalmar a galera.

Dá a maior vontade de fofocar. Levantar-se da rede e botar a boca no mundo, comprar briga no “Livro de Reclamações”, ou depositar um lixo bem fedorento na porta dele.  Ou, quem sabe, escrever algum tratado sobre “O contrassenso que habita o ser humano segundo Platão” ou coisa parecida.

Bobagem! Ela é só a velhinha da porta ao lado, mulherzinha sem noção, chi lo sà com alguma demência senil, sem nenhum engajamento político-ecológico. Valha-nos Deus!

Ela até gostaria que o mundo se resumisse ao que a “Bibra reza”, como diz sua faxineira. A “Bibra” é do bem. É assim o mundo de hoje. O “maktub” islâmico. Está escrito. Não se pode discutir com quem detém a sapiência. Melhor ficar lá deitada na rede.

A palavra é a única arma que a vizinha tem contra  a insanidade. É bonito, mas é anêmico.

Ariano que a perdoe. Ela não sabe se a sua preguiça é de Deus ou do diabo. Só sabe que Caymmi, bem lá na dele, boa preguiça baiana, balançando sua rede, olhando pro mar, bebendo, supostamente, água de côco, Ocasionalmente (mais precisamente 106 vezes) pegava seu rocinante da inspiração, sua espada de palavras e estraçalhava de beleza o feio e fedido lixo da realidade. Aí, botava as coisas nos containers certos do nosso cérebro e do nosso coração.

Mas eis que era Caymmi. Preguiça de Deus. Ela é apenas a vizinha idosa da porta ao lado.

Ah! Como é doce morrer no mar!...

 

 

 

 

 

Maria Solange Amado Ladeira                                  30/05/22

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