Inutilezas

 

Inutilezas

Solange Amado

 

Não sou apenas uma. Isso me consola. E me liberta. Porque não sou razoável.    Nem coerente. Não quero ser e não preciso ser.

Dizem que antes de descer a montanha de trenó, temos de levar o trenó lá em cima. Nunca desci de trenó que eu não sou besta. Desci de a pé mesmo, que só me carregar já é um esforço. E fui jogando culpas pelo caminho. Maior achado. Ficou leveza. Demorou mas me destralhei.

Na verdade, meu passatempo é caraminholar. A especialidade é o inútil. Se tiver de ter coerência, se tiver de ser tudo certinho, tô fora! Palavra não tem de bater continência, formar fileira, fazer fila indiana, marchar com coerência, com a lógica absurda que a realidade exige. Palavras são vagabundas de nascença. Graças a Deus não tenho razão. Só palavras adolescentes têm razão. E estão enganadas. Eu apenas existo e tenho dúvidas.

O melhor da escola é o recreio. A imaginação é o recreio da realidade. Aí eu posso brincar. De prático não sei nem bater um prego. Fiquei especialista em inutilezas, como diria Manuel de Barros. Sofri disso a vida inteira.

Minha mãe dizia que a sem jeiteza me mandava lembranças todos os dias. Era simpatia, quase amor. A sem jeiteza se identificou comigo. Não fiz nenhum esforço para isso. É paixão assim de graça. Não careceu de nenhum esforço.

Fui pra Escola de Costura. Tentei costurar as palavras num manequim de proporções elegantes e politicamente corretas. Levei bomba. As palavras teimavam em se soltar, ultrapassavam o molde e as linhas arrebentavam e misturavam cores e texturas.

Cozinhar também tentei. Talvez fosse a solução. Mas não se podem cozinhar as palavras. Elas perdem o tutano. E o gosto está no tutano das palavras. E a casca? Aquela coisa meio rude, meio crua. Dá o maior tesão no escrito. E tempero bom sai na hora. Não pode ser programado. Não deu certo. Palavras escapam a todas as receitas.

Meu pai dizia que se eu comesse as sementes da melancia, ia nascer um melancial na minha barriga e os galhos iam sair pelo nariz. Talvez, se a gente comer palavras possa nascer um palavrial dentro da barriga. Substantivos, adjetivos, verbos, advérbios, provérbios...

Mas não é uma boa ideia. Não se sabe como esse material será expelido. E ao que parece, tem muita gente comendo palavras e certezas todos os dias. Esse método não garante nenhum escritor ou poeta digno dessa “arte de não dizer nada” dizendo tudo.

Afastei-me da cozinha, da costura e do tricô por absoluta incapacidade de me dedicar a utilezas.

Nem posso dizer que me dedico ao ócio criativo. Se eu soubesse o que é isso, Manuel de Barros ia se haver comigo. Podia chama-lo no braço e fazer um sexo selvagem de poetagens e inutilezas

Por enquanto, só posso pedir desculpas que hoje não rolou inspiro nenhum. E não estou disposta a levar meu trenó e minhas culpas morro acima. Sobraram a sem jeiteza e essa mulher que sou. Um verso reverso de incertezas.

 

 

 

Maria Solange Amado Ladeira    02/11/22

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