A fada do dente
Solange Amado
A garotinha
de 6 anos é especialista em botar as pessoas em saias justas.
-“Tia,
morrer é pra sempre?”
-“É”.
-“Mas é tipo
assim, não tem segunda chance?”
-“Não.
Morreu. Tá morto”.
A tia não dá
refresco. Pausa.
Ela não desanima:
- “Só morre
quem tá muito velho, né?”
- “Não.
Morre-se em qualquer idade”.
-“Não tem
nenhuma vacina?”.
-“Não. Não
tem”.
A tia está desconfortável. O rumo da prosa está
desconfortável. E a tia está no computador. Lugar perigoso onde tico e teco perigam
bater de frente e falecer. E vem essa conversa transcendental que não acaba.
-“Mas se todo mundo vai morrer MESMO, por que então que
nasce?”.
-“Ouça. Tudo no mundo que é vivo tem um ciclo. As flores
nascem, brotam, dão flores lindas e depois murcham e morrem. As árvores também.
Os animais também”.
-“As flores têm medo de morrer?”.
- “Não creio. Elas simplesmente vivem.”
- “Você tem? Você disse que já tá murchando.
Caramba! A criança é um ferrinho de dentista.
A tia sente que está entrando em terreno pantanoso. Hora de
recorrer ao seu SAMU preferido: sorvete. Haagen Dazs. Caro, mas a situação
exige.
Dia desses, ela perdeu dois dentinhos na frente. O pai avisa
que a fada do dente virá à noite com uma grana legal.
Dia seguinte, com uma nota de 10 reais em cada mão, ela
apregoa sua riqueza. Pode viajar, comprar um carro, um milhão de brinquedinhos
digitais, um celular 5G e nunca mais sofrer a humilhação de pedir emprestado do
pai ou da mãe.
Na intenção de baixar a bola da filha, o pai explica que
aquele dinheiro não dá pra comprar tanta coisa. Um chocolate, talvez.
Dia seguinte, pede à mãe pra ir à Cacau Show. Vão e voltam,
passam na casa da tia e a garota se queixa amargamente da pão duragem da fada
do dente. Agradou de uma caixa de chocolate. Estendeu entusiasmada as duas
notas de 10 para a vendedora. “A moça falou que precisava de mais 5 (cinco!
Mostra com as mãozinhas) dessas”.
A tia se cala. Sabe que a fada do dente é marca barbante não
é de hoje.
-“Quanto é que a fada lhe deu quando seus dentinhos caíram?”
Bom, eles ainda estão aí, mas ela é que coloca umas notinhas
para a dentista na calada da noite para evitar que seus dentinhos caiam.
O que ela não deve dizer é que, verdade nua e crua, naqueles
tempos de antanho, criança não tinha refresco não. Tio chato vem se hospedar,
lá vai ela ceder a sua cama e ficar caladinha. Dona Fulana vem visitar. Nada de
dar palpite. Bico calado. Proibido
avançar no bolo recheado, que não era nenhum haagen dazs, mas era o que tinha e
dava água na boca. “O sapato NÃO está apertado! Tem de durar até seu
aniversário”. Ela é virgem. O aniversário é em setembro. Estamos em março, tem
de esperar até que os dedos fiquem engrudunhados dentro do sapato tanque.
Afinal, a patota de 6 tá crescendo, tem
sempre um pé apertado. E o vestido novo? Vai ter de usar. O vestido-alface novo
era de organdi. Um calor dos infernos e o vestido espinhando e coçando até a
planta do pé.
Que mané fada do dente que nada! Que venham Stalin, Mao Tse
Tung e adjacências! A gente encara. Já tem prática.
Maria Solange Amado Ladeira
25/10/22
www.versiprosear.blogspot.com.br
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