Sincericídio

 

Sincericídio

Solange Amado

 

O entrevistador chato estava lá, olhando para a câmera. Na sua frente um garotinho todo enfatiotado num terno maior do que ele e brilhantina no cabelo, parecendo um Carlos Gardel mirim. Visivelmente incomodado, se remexendo na cadeira, o garoto de repente pergunta: “Quantos anos você tem?” O camarada responde: “35 anos”. O pequeno replica: “não parece!”. O entrevistador dá um largo sorriso envaidecido. E ouve: “parece ser bem mais velho”. Sincericídio total.

A tia, muito bocuda, se lembra de uma experiência bem ruim quando era pequena. A família esperava a visita muito importante de uma vaca sagrada do mundo político da região. O velhinho usava uma bengala de cabo de prata e a menina sabia por fofocas familiares que ele havia perdido a esposa recentemente. Na hora aprazada, lá vem o velho manquitola de mãos dadas com uma linda mocinha. “É sua neta?”  Pergunta a tia bocuda.  “É minha namorada”. Saia justa monumental. E o olhar assassino do pai prometendo castigo à altura pra mais tarde. Que veio, lógico.

A tia dá voltas em frente ao espelho. Vestido novo e maquiagem feita no salão. Nada mal. “Estou bonita?” Pergunta à pequena de 5 anos que botava reparo em toda a função. “Não”. Foi a resposta lacônica. Se não quer ouvir a resposta, não pergunte. Simples assim. A pequena não economiza no sincericídio.

Não há dúvida, há sincericídios do bem e sincericídios do mal.  Nenhum presta. Difícil ouvir verdades. A tia insiste porque é cabeça dura. “ Cabeça dura, bunda mole”. Mas é uma bunda mole de respeito, porque insiste nas perguntas. Com tantos anos de perguntas e respostas  assim na lata, com o tempo o couro foi endurecendo. E nunca foi mesmo de enfeitar a vida com frou frous. Trinca os dentes, mata no peito e chuta pra frente.

Daí que ouve as verdades sem muitos dramalhões. Porque as verdades são necessárias e são fruta rara hoje em dia.

Pois é, mas os sincericídios não se resumem à inocência de criancinhas sem papas na língua. É muito mais do que isso.

Albert Einstein escreveu certa vez, um artigo complicado com o intento de provar alguns aspectos de uma de suas teorias. Do outro lado do mundo, outro cientista por sua vez, escreveu outro artigo apontando alguns erros nos seus cálculos. A coisa repercutiu de maneira sensacional. O homem ousava apontar defeitos num premio Nobel, QI 160, alguém muito reverenciado pelo mundo científico. “How dare you!”

Einstein leu o artigo cuidadosamente, refez seus cálculos, constatou o erro e admitiu publicamente seu engano com essa declaração: “Não sejam severos demais comigo. Todo mundo precisa, de vez em quando, fazer um sacrifício no altar da burrice para agradar a divindade e à humanidade. E eu o fiz de maneira profunda com meu artigo”.

Gratificante ver que um sujeito da estatura de um Einstein,  coloca-se humildemente como um ser humano, falível, sujeito a enganos, chuvas e trovoadas. E quantas nulidades por aí se colocando acima do erro e da humanidade!

Viola Davis, a grande artista, acaba de fazer sua autobiografia na qual escreve: “A fama é uma névoa. A popularidade é um acidente. Dinheiro ganha asas. E apenas uma coisa permanece: CARÁTER”.

Esse, o vento anda levando cada vez mais pra longe.

 

 

Maria Solange Amado Ladeira          - 04/10/22

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