lVigília

 

Vigília

Solange Amado

A tia fica zapeando pelos canais de TV tentando achar algo que não seja tão medíocre. Não dá para ler. A vista já trabalha muito durante o dia, quase trabalho escravo, e pede arrego de letrinhas de noite. Quem sabe imagens?

Meia noite. A carruagem já virou abóbora há bastante tempo,  mas o Príncipe do Sono se recusa a dividir a cama com ela. Essa rejeição vem de longo tempo. E dói.

Fazer o quê? George Clooney também é assim, avesso aos seus desejos. Quando era jovem, tinha uma vizinha da mesma idade que também sofria dessa mesma rejeição (do sono, não do George Clooney que ainda estava nos cueiros). E lá pelas tantas, começava a bater a cabeça na parede. Toda a família vinha acudir.

A tia até aventou a hipótese de usar essa estratégia. Mas pancadas na cabeça em idade provecta não são nada recomendáveis. O miolo já anda mole. Êxito improvável.

Aí ela volta para os telejornais com suas narrativas estapafúrdias. Vai mudando os canais: moda, comilança, poliamor, alta infidelidade, BBB, bênçãos e exorcismos, as Kardashians (que ela nunca sabe se são uma família, uma seita, um bando de turistas tresloucados, enfim...) O mundo endoidou. Tá batendo a cabeça na parede. Ninguém acode.

Meditação é bom. Ele tentou com um amigo que até comprou um terreno na montanha pra fazer um templo budista. A meditação dele tinha completo êxito, desde que fosse regada a muito vinho. Aí mergulhava no completo sono dos justos. Desconfiou que o tratamento, além de caro, ia torna-la alcoolatra. Agradeceu.

Yoga também é bom. Abriu espaço na agenda e lá foi ela. Aflita. A sala era grande, na meia luz, barulhinho de água caindo, umas cinco pessoas estendidas em decúbito dorsal e um sujeito magrinho dizendo coisas num sussurro. A tia notou de cara que só tinha um banheiro. Tinha de ser a primeirona a se trocar e partir desembestada pra dar sua primeira aula na Faculdade. Ou já era. Chegaria atrasada. Todos os seus sentidos ficavam alertas. Quando o cara dava o tiro de partida, ou melhor, do término da sessão, ela trotava célere para o banheiro. Foram dois meses treinando pra São Silvestre. Desistiu.

Chá. Dizem que é bom. Chá de casca de maçã. Tomou jarras inteiras. Só fez muito xixi. O sono não gostou do cheiro da maçã. Nem ela. O five o’clock tea não rolou.

Depois lhe deram de presente uma fontezinha elétrica, com pedrinhas, luzinhas coloridas e a água caindo no meio das pedrinhas. Uma graça! A ideia é dormir ao som desse burburinho relaxante. Cê besta! E se a água seca e a fontezinha explode no meio da noite? O cobertor elétrico da sua amiga sapecou o colchão dela todo. Se a gente dorme, fica sem controle sobre todas essas coisas.

Verdade que permanecer acordada não é garantia de que  possa controlar o mundo.  Mas dormindo, aí é que a coisa fica braba. Sem chance.

Acordada tem a esperança de que possa atender ao telefonema do Putin e aconselhá-lo: “Cara, pare com essa doideira de armas atômicas. Faça um verso de primavera. Fale da vida em ré maior. Mais amor, por favor!”.

Além do mais, a amiga ficou de lhe mandar o volume III do livro “ Escravidão” do Laurentino Gomes quando acabasse de ler, e ameaçou puxar sua perna se morresse antes disso. Morreu! Ela sempre cumpria sua palavra. Vai que cumpre a ameaça!

 

 

 

 

Maria Solange Amado Ladeira                                                                27/09/2022

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