O papiro

 

O Papiro

Solange Amado

Nem “batatinha quando nasce”. Nem isso. Nada esparramava, nem crescia no chão inóspito do seu cérebro. O tico se perdeu do teco fazia tempo. A situação ficando para lá de braba. Foi quando ela entrou. Avisou que seu trabalho ficaria prejudicado naquele dia porque estava com “dor nos neurônios”, algum local desconhecido nas suas costas, que, no entanto, não era o mesmo de uma “dor asiática” que esta sim, esparramava nas pernas, que isso ficasse bem claro. E como a patroa não respondesse porque estava mais preocupada com a batatinha que esparramava no chão da sua infância e do seu cérebro, ela permaneceu na porta do quarto, imóvel como um mordomo inglês: “I beg your pardon”.  Era inevitável um dedo de prosa.

E então, do nada veio esse diálogo transcendental:

- “Minha vizinha adulterou.”

- ???????????????

- “É. A “Bribra” não diz que é pecado adulterar?”

_ “Ah! Sei. Ela cometeu adultério.”

- “Não. Adulterou mesmo. É assim que a “Bibra” fala. Está vivendo em pecado.”

A patroa, pouco atraída pelo papo, mais ligada à folha de papel não respondeu. Ela continuou tentando:

- “Hoje você escreve no papel, né?  Mas quando era mais nova, escrevia em papiro. Lembra disso?”

??????? A patroa levou um susto. Verdade que a idade já lhe estava subindo pelas canelas, quase batendo no traseiro. Verdade que a sua infância já tinha se perdido na poeira do século anterior. Mas daí à escrita no papiro era novidade.

- “Então você não sabe? Quem escreveu a “Bibra” não tinha papel, usou uma coisa chamada papiro. Uma folha grossa enroladinha assim. Você deve se lembrar. Não tinha papel, mas já tinha “as letra”.

- “ Ih! É preciso estar muito inspirado pra escrever em papiro, né?”

-“É. Mas não é “inspiro” assim que nem o seu que pega uma folha de papel e escreve assim qualquer coisa que nem é sabedoria. O Espírito Santo foi direto na cabeça dele e inspirou, por isso, a “Bibra” não erra. É coisa de Deus. Diretamente.”

Essa “coisa qualquer que nem é sabedoria” doeu, mas a patroa aguentou o tranco. Não era nenhuma inverdade. Raramente o Espírito Santo dava uma mãozinha e entrava no território dos seus miolos com essa precisão bíblica. Não que ela tivesse a pretensão de escrever alguma verdade absoluta, genial, divina.  Ao contrário, a tinta dos seus papiros, com o tempo tem ficado cada vez  mais apagada e eles estão ficando cada vez mais enroladinhos. Não exatamente por culpa dela, mas dos tempos atuais que, como a vizinha da faxineira, adulteraram a lógica. Infalibilidade é com políticos e juristas. Ela é apenas uma mulher. E olhe lá.

-“É assim mesmo, a gente é pecador, vai pro lado errado, quer acertar e faz tudo errado. Das minhas cinco fia, quatro nem casaram,  ajuntaram com uma peleja, sofrimento sem fim. Só uma casou de papel passado. Mas casou errado. Com outra mulher.”

- “ E você foi ao casamento?”

- “ Não. Ela insistiu, mas eu falei: a “Bibra” diz:  Adão e Eva. Sem variação”.”

E fim de papo. Sei não. Talvez esse negócio de “papel passado” esteja fora da moda. Quem sabe se for “de papiro passado?”...

 

 

 

Maria Solange Amado Ladeira                              21/03/2022

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