Os perigos da velhice
A tia já sabe que três coisas são muito perigosas para o
velho: queda, pneumonia, e piriri. É
passagem só de ida. Bambeou as pernas, deu chiadeira no peito, sofreu vento
encanado pelas costas, pode botar as barbas de molho, que, não obstante o termo
politicamente incorreto, a coisa fica preta.
E aí seus amigos deram de cair. Sem mais aquela. Coisa de uns
cinco meses, a amiga enfiou o pé numa boca de lobo e quebrou o tornozelo; o
amigo trupicou num buraco do meio fio e do alto dos seus quase 1,80m foi de
cara no chão. Quebrou a mandíbula. Baita perrengue. Já gastou um carro com
ortopedistas, dentistas e uma parafernália de ferros na boca. E mais, alguém
lhe diz “en passant” que uma conhecida foi abraçada com bastante entusiasmo por
um amigo, pelo seu aniversário, e crac! Duas costelas quebradas. Verdade que a
densitometria óssea já tinha avisado: “essa madeira tá podre! O amigo não
sabia. Tirante que na pracinha em frente, tem um coqueiro velho de guerra, com
um galho seco quase caindo. Alguém botou um aviso “risco de queda”. E a
Prefeitura entregou pra Deus.
E nesse vai-da-valsa, a tia vai pra um almoço em família. A
sobrinha-neta fazia 3 aninhos. Vestida de Chapeuzinho Vermelho, faladeira e
desembaraçada, entrou no personagem, distribuindo doces e dando a maior atenção
à tia, que pelos seus parâmetros deve ter lá uns 100 anos em cada perna.
O churrasco vai se desdobrando como todo churrasco que se
preze, com falatórios, cervejas, refrigerantes e conversa fiada. Era noite, o
quiosque iluminado, a tia deu de caminhar até à casa, atravessando um gramado
escuro e subindo degraus um tanto ameaçadores. Pernas bambas e alguns cálices
de vinho borbulhando na cachola, a velhota resolve atravessar o Rubicão escuro.
Um pé atrás do outro cautelosamente. Vai que encontra pelo caminho uma boca de
lobo, um buraco no terreno, uma folha de coqueiro que lhe cai na cabeça. Vai
que, né?
Mas a pequena está atenta. Percebe a hesitação da tia e
oferece o seu apoio. Segue tagarelando: “Tá com medo? De que? Me dê a mão que
eu sou “colajosa”. A tia informa que tem medo do boi da cara preta, do lobo mau,
de politiqueiros e coisas que tais.
E aí é que vem o melhor. A pequena, muito curiosa, revela que
está fazendo “isso tudo” de anos, levanta três dedinhos e mostra. “E você,
Quantos anos você tem?”. A tia levanta os dez dedos , sacode-os diversas vezes.
“Isso tudo!”. A garota conta nos seus dedinhos gorduchinhos, vai e volta, sem
conhecer direito os números: quinze, cinco, nove. E exclama: “Nossa! você tem 29 anos!”. Está certíssima, é claro. Fiquem fora disso.
Pois o entusiasmo da tia durou até hoje de manhã. O lazarento
do seu plano de saúde botou farofa no seu ventilador. O médico pediu uma
mamografia no finalzinho do outubro rosa. Ela chega ao local do exame, responde
a um questionário, a atendente faz uma plaquinha com a sua identificação, bate
um carimbo vermelho e prega na sua blusa, acima do coração. Ela tenta ler. Não
consegue. Está num ponto cego. O que estaria dizendo o carimbo vermelho?
Ela marcha firme por um corredor, tira a blusa, os peitos são
postos num moedor de carne. E pronto!
Recoloca a blusa e arranca a plaquinha. E nela, um carimbo vermelho avisa:
“Risco de queda!”
Caramba! Ela só tem 29 anos!!
Maria Solange Amado Ladeira 01/11/2021
www.versiprosear.blogspot.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário