A liberdade de escrever e o sapato cambeta

 

A liberdade de escrever e o sapato cambeta

Solange Amado

Por nada não, mas vou cometer uma inconfidência. Digamos que é uma fofoca do   bem. Não reparem. Questão de cautela que os tempos estão brabos. Nunca se sabe o que se pode dizer.

A tia comete uns versos, uns escritos por aí e costura tudo na bainha dos seus casacos de inverno ou esconde debaixo dos tacos da sala.

Muito bem. Sei que a tia é idosa e vocês são ageístas de quatro costados. Mas estão enganados. Ela é esperta. Vai que desagrada Stalin, ela vai pra Lubianka ou leva um tiro na nuca. Ou vai para algum gulag.

Pouco provável? Engano seus. Mirem-se no exemplo do poeta russo Óssip Mandelstam. Stalin regulava a mídia por assim dizer e Mandelstam pensava diferente dele. Além disso, apesar de todos os perrengues, tinha talento e ganhou fama internacional. Stalin queria esse talento a serviço dele. Seu plano de revelou inútil. Quem não está comigo, está contra mim. E aí deu no que deu.

Desesperado, Stalin confiscou o ordenado dele, sua casa, seus escritos. Sua sobrevivência, enfim. No inverno russo, sobrevivia de migalhas dos amigos corajosos Sua casa era uma geladeira. Não havia lenha pra aquecer os cômodos, nem mobília, só dois colchões. E assim viviam, ele e Nadiejda, sua santa mulher “onde tu fores eu irei”, até no exílio onde ele  morreu. Daí que ela guardava seus poemas  na cachola, na falta de lugar melhor, onde coubessem. E aí ficavam tuberculosos juntos. 

Mandelstam ironizava: “em nenhum lugar do mundo se dá tanta importância à poesia: é somente em nosso país que se fuzila por causa de um verso”. E aos que suplicavam para que ele escrevesse coisas mais politicamente corretas, dizia: “Eu nunca escrevo. Componho poesia na cabeça e a dito para Nadienka. Ela é a única que escreve”. A cara metade era pau pra toda obra. Como sói acontecer.

Graças a Nadiejda e a seus muitos admiradores, ele escrevia, e a força da sua escrita atravessou fronteiras dentro de esconderijos, os mais improváveis. Seus discípulos se reuniam uma vez por semana na sua sala gelada, sentados no chão, uma multidão e nem um chazinho para oferecer, e a “ tcheca”, a polícia política infiltrada, botando reparo naqueles doidos que enfrentavam tudo para ouvir um outro maluco que só tinha a coragem e a  força da palavra. 

Um dia, Stalin deu-lhe uma passagem só de ida para um gulag onde bateu as botas. Nadiejda, que o acompanhou espontaneamente, conseguiu sobreviver, voltou e a primeira providência foi arrebanhar toda a obra do companheiro, que foi possível salvar, em todos os lugares.

Se até cerca de 1940 Mandelstam era só um poeta maldito, um pária das letras, proibido de ser publicado; seus escritos estão voltando à baila com força total, enquanto Stalin vai para o lixo da história como “o assassino de bigode de barata”, no dizer do próprio M. A história às vezes custa, mas sempre coloca as coisas no lugar.

Eu também não conhecia Mandelstam, a tia foi quem se encarregou de apresentá-lo.

   “Um friozinho faz cócegas na nuca

    é impossível ver de imediato

    também a mim me corta o tempo como

    a ti se desgasta e camba o sapato”...

 

    “Dantes era melhor, é bem verdade;

     esse velho sussurrar de outrora

     em nada se pode comparar,

     ó sangue, ao teu sussurrar de agora!”.

 

Também à tia, o tempo lhe corta e os sapatos ficam cambetas. Mas o sangue ainda sussurra e se derrama em palavras.

E ela vai costurando nas bainhas da vida.

 

 

 

Maria Solange Amado Ladeira            09/06/2022

www.versiprosear.blogspot.com.br

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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