O novo normal e o vocabulário
Solange Amado
O novo normal. O que vem a ser isso ela não sabe. Só sabe que
todo mundo fica repetindo ad nauseam essa ladainha. Ela sabe o que é novo, só
não sabe o que é normal. Mesmo porque, ela nunca foi normal, mas já foi nova.
Até ontem.
Ontem descobriu que sofre de idadismo. Nem precisa pedir
ajuda aos universitários. A OMS teve a gentileza de explicar que são
“estereótipos, preconceitos e discriminação direcionados às pessoas com base em
suas idades”. Se ficar mais fácil, pode chamar de etarismo. Ela ainda não
sabia. Se soubesse poderia ter dito ao grandalhão nervoso que queria passar à
sua frente no ônibus: “Seu safado idadista!”. Ele disse: “Essas velhotas só
atrasam a gente, deviam ficar em casa”. Não obstante o excesso de testosterona
crescendo na sua traseira, ela poderia explicar ao jovem cavalheiro que a OMS
considera o idadismo um retrocesso. Mas ficou calada. Gastar vela com pouco
defunto não é atualmente sua meta. E a OMS não é nada confiável.
Idadismo ou não, ela concorda que velho é sempre uma íngua. A
tendência do mundo é mocozar os velhos todos para que não atrapalhem os jovens
na sua corrida desenfreada para a velhice: “Sai da frente vovó! Tem uma
caqueira me esperando alí adiante”!
Ela podia cuspir na cara dele, fazer um gesto com o dedo
médio ou soltar um palavrão. Xingar a mãe dele ou chamar a polícia, mas aí
teria de explicar pro delegado, que se trata de etarismo. Ia dar muito
trabalho. Vai contar para ele que em tempos muito remotos também já sofreu de
gordismo. Isso ela aposta que o rechonchudo delegado sabe o que é. Não
obstante, desistiu. Daria muito trabalho.
E vai daí que ela está revirando na boca que nem chicletes
esse novo vocabulário, sem saber o que faz com ele.
É quando a amiga a convida para um cinema. Sábado à tarde.
Filme leve para senhoras idosas. A tia prefere um goró numa quebrada qualquer e
um bom papo. Mas nada a fazer, a outra não tolera álcool. Têm a mesma idade,
mas a amiga é muito mais fashion. Dona de uma confecção bastante conhecida, tem
um guarda-roupa de primeira linha e um porte de realeza britânica. Com a ajuda
de alguns botox e uma esticadinha daqui e dali, vai rompendo o tempo com poucas
caqueiras e um salto alto maneiro, do qual o joelho da tia tem um ódio e uma
inveja incomensuráveis.
Aí, veio o golpe mortal. Ao passar pelo bilheteiro com
bilhetes de meia entrada de idoso nas
mãos e no alto dos saltos, este diz à amiga: “A senhora pode me mostrar sua
carteira de identidade”? Caracas! Deus seja louvado! A tia fica se sentindo no
sétimo céu. Corre a apresentar sua carteira de identidade. O que vale pra uma
vale pra outra. Certo? Errado. É aí que o lazarento do bilheteiro rosna: “A
senhora não precisa não. Pode passar”. Nossa Mãe! Esse cara vai direto para o
inferno sem parada pro cafezinho. É uma praga e uma promessa.
Não foi bem idadismo. Foi uma constatação. Mas vamos e
venhamos que o jovem poderia pegar mais leve. Afinal, se as duas serviram
juntas de garçonete na Santa Ceia, o tempo foi discriminatório e preconceituoso
na distribuição da grana e das caqueiras. Ela não tem culpa.
O Importante disso tudo é que se a tia pensava que não ia
aprender mais nada na vida, anda catando por aí uma fartura de nomes
complicados de novas oportunidades para o sofrimento dos idosos – idadismo,
etarismo, anedonia, aporofobia.
É o novo normal estimulando a velharia a sair do sofá, abrir
o google, o dicionário ou convocar os universitários e pesquisar. Não adianta
nada, mas pelo menos a velhinha vai cair de tanta erudição. Se não se machucar,
tá valendo.
Maria Solange Amado Ladeira 28/08/2022
www.versiprosear.blogspot.com.br
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