Rapsódia Húngara no 2
Solange Amado
Era negra, gordinha e simpática. E tocava piano. E como! Nada
de canções francesas para nos distrair e aparecer nas festinhas. A coisa era
mais pesada. Bach, Beethoven, Mozart, Chopin. Muitas ali nem sabiam da existência
desses senhores. Por acaso a tia sabia, porque sua mãe também era pianista. A
diferença de idade entre as duas pianistas era grande, mas às vezes trocavam
partituras e até tocavam a quatro mãos. A tia, que tinha a mesma idade que a
jovem pianista ficava botando reparo naquela parceria improvável e a amizade
nasceu entre as duas garotas.
A mais velha tentava conciliar o conservatório, os filhos, o
trabalho de professora e o piano. Esforço insano. A menina ao contrário, tinha
dedos ágeis e um talento que passeava pelo teclado como se estivesse fazendo
footing na praça. Não parecia trabalhoso. Talvez não fosse. Ela nunca se
queixava.
A garota pianista costumava dizer que Deus, ao fazê-la deve
ter esquecido a massa no forno tempo
demais: “fiquei assim, escurinha e rechonchuda”. A tia, da mesma idade, era
magra demais, branca demais e levava alguns cascudos para tocar algumas escalas
ao piano. Era o máximo que conseguia. Faltava o “algo especial” na massa do bolo que havia de sobra no da sua
amiga.
As duas eram como unha e carne. Quando adolescentes, uma
tomou o namorado da outra. Andaram estremecidas. Mas a amizade resistiu. O cara
não era mesmo grande coisa.
O piano da casa da tia era pequeno, preto, charmoso e já
usado. O que deu pra comprar. E quem
botava a mão suja nele apanhava. O da amiga era um elefante marrom, meio
detonado, ocupando a sala toda. Teclas amarelas, difícil afinação. Foi o que
deu pra comprar.
A garota do piano tinha um horário apertado pra estudar Bach.
A tia não gostava de Bach. Era chato, mas bom pra desenvolver a técnica,
segundo os professores do Conservatório. A pianista não gostava de escrever, a
tia gostava. Era o seu talento mequetrefe. Enquanto esperava o interminável
Bach ela fazia o dever de português da amiga e as redações. Assim, roubava ao
piano, alguns momentos daquela escravidão musical e iam cair da bicicleta.
Nenhuma das duas aprendeu de fato a pedalar. Mas a vida lhes ensinou direitinho
a andar na corda bamba sem sombrinha.
A tia acha que foi Franz Liszt que lhe apresentou a amiga.
Ela estava tocando a Rapsódia Húngara no 2.
Na casa do piano preto havia um baralho muito legal com todos os
compositores. A criançada adorava jogar. E discos de 78 rotações. Daí ela saber
que foi Liszt. Os dedos ágeis mal atingiam uma oitava. Mas talento é talento.
Assim, foram tocando a vida. Até que a vida as tocou cada uma
para um lado. A pianista comprou um piano novo, casou, teve um filho, se
separou e voltou a namorar sério com o piano, depois de uma fase de
estranhamento e depressão.
E aí se encontraram. Há dois meses. Iam fazer uma excursão
juntas. Aos Lençóis Maranhenses. Sonho
antigo. A tia não foi. Teve outro compromisso. A amiga foi e toca a lhe mandar
fotos e vídeos, cada um mais bacana que o outro. Narrava os passeios como se
estivesse tocando para ela no seu velho piano.
De repente, parou. Nada mais chegava.
Uma amiga que estava na mesma excursão se encarregou de
relatar à tia. “Estávamos subindo uma duna. Sol de quarenta graus. Sofrência e
muito esforço. O guia tentava ajudar a senhora que estava sem fôlego. De
repente chegamos ao topo. A paisagem era deslumbrante. A senhora calmamente
saca o celular, tira uma foto e cai pra trás. O coração parou sem mais aquela”.
Saiu assim da vida, bem pianinho. Na mesma cadência sofrida
de fortes e fracos que ouvimos na Rapsódia Húngara no 2.
Maria Solange Amado Ladeira 31/07/2022
www.versiprosear.blogspot.com.br
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