Liberté, egalité, fraternité

 

Liberté, Egalité, Fraternité,

Solange Amado

A liberdade é não toda. A realidade está sujeita a chuvas e trovoadas. A igualdade desapareceu no ralo da corrupção. Mas os franceses insistem nesse negócio de Liberté, Egalité, Fraternité

Os dois primos brincam na sala de televisão. A garotinha de 5 anos e o primo de 9. De repente a menininha faz um convite ao garoto: “Vamos ligar a TV no programa do caixão da rainha?” O primo recusa. Anda impressionado. Semana passada brigou com a avó no telefone e acabou chorando, porque ela, boba que é,  disse que vai assumir os cabelos brancos, e depois, quando a cabeça estiver toda branquinha, vai pintar de azul bem clarinho.

Ele se apavorou: “Não, vó, você não está vendo  a Rainha da Inglaterra? Deixou o cabelo ficar branco e morreu”.

Cabelo branco é fatal. A avó tá brincando com fogo.  Não houve meio de demovê-la dessa ideia maluca. Nem choramingando. Aí o pai entrou na conversa e encerrou o assunto: “Deixe sua avó fazer o que quiser. O cabelo é dela. Vá escovar os dentes e dormir”. Se ferrou.

Mas não vai desistir. Não vai permitir que a avó fique passeando pelas ruas do Rio de Janeiro, mesmo com muitas flores, cavalos brancos e ele, com um terno preto meio ridículo seguindo atrás cabisbaixo. Sem chance.

Mas a garotinha não se dá por vencida. Pega delicadamente a mão do primo: “não precisa se preocupar. Ela já não está lá já tem um tempo. Você acha que alguém aguentaria ficar tanto tempo sem comer, sem beber, sem fazer xixi, dentro de um caixão? É porque ela é rainha, pô!”

O primo não parece estar lá muito convencido, mas aquiesce e a garotinha vai narrando com entusiasmo: “Aquele lá de saia e o príncipe. Só no final, quando beijar ela. Aí, ela vai acordar”.

Quase que eu acredito. Eu queria acreditar. Já é meio caminho andado. Mas não rola. Já até perdi meu sapatinho numa escadaria. Me estabaquei nos degraus e nenhum príncipe apareceu me oferecendo um adjutório. Comecei a desconfiar que esse negócio de Alteza Real é coisa pra boi dormir. Prefiro as Altezas Surreais. E tenho tentado sobreviver com isso. Mesmo porque, subir uma escadaria é como escalar o Everest. Dificilmente chegaria nessa Alteza.

Então, vamos acabar já com isso de Príncipe Encantado ou Desencantado, Rainha Consorte ou Sem sorte. A gente não tem mais 5 anos. Isso é só pra Inglês ver.

Francês não. Francês vai na esteira do Liberté, Egalité, Fraternité. Esse trem grudou desde a época da revolution française porque soa bem.

Eu por mim, tô caçando a egalité na real por esse mundo afora. A liberté então nem se fala. A única liberté que a gente tem no durão mesmo é a de sonhar. Mesmo assim é como bolha de sabão, porque sonho que se torna realidade não é mais sonho. Puf!

Vai daí que poetas, seresteiros, namorados correi que o tempo está acabando. Façam canções, poemas e beijem em nome de uma liberté e uma egalité que a gente caça em vão.

Os franceses que me perdoem, mas estão por fora. Não obstante sejam palavras bonitas como uma lua cheia e mereçam canções, serestas e carícias mil, e mesmo que enfeitem seu cortejo com flores e cavalos brancos, essa dupla egalité e liberté não se sustenta.

A honrosa exceção, no entanto, está na Fraternité. Ela sim. Existe. Nesse domingo à tarde, eu a vi estendendo a mão ao amiguinho e pedindo que ele não se apoquente com a feiura da morte. Pode-se substituí-la por belas imagens. Me dê a mão, meu amigo, e se jogue no sonho porque é o que nos resta. Ninguém solta a mão de ninguém até o caixão baixar à cova. Aí sim, seremos livres.

 

 

 

 

Maria Solange Amado Ladeira                                                         20/09/22

www.versiprosear.blogspot.com.br

 

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário