Focinheiras e outras milongas

 



Focinheiras e outras milongas


Solange Amado

 

A tia anda sem paciência.Viver é bom, mas é uma merda. E a pandemia deixou todo mundo mais biruta ainda. Muita raiva e focinheira pra conter as mordidas. E se afogar num calor louco.

E eis que chega o dia em que os humanos são libertados cautelosamente da focinheira. Talvez não se mordam. Ela foi a primeira, disposta até a beijar as estátuas da pracinha.

 Só que não. Sai garbosa, respirando plenamente óleo diesel, aquela fumaça preta de ônibus, olhando olho no olho os seres humanos libertos dessa mordaça. Bom olhar o mundo sem óculos embaçados. Ledo engano. Ela não tinha previsto o medo internalizado, grudado que nem ostra: “por enquanto vou usar”. Por enquanto, o que, cara pálida? Esperando o que? Garantia? De quem? Dos  “organismos internacionais”, mais perdidos do que cego em tiroteio? E aí? Quosque tandem?

Ela volta pra casa ruminando essa sua vã filosofia, entra no elevador e um cara gordinho entra esbaforido atrás. Ela pergunta gentilmente em qual andar ele vai descer pra fazer o favor de apertar seu número. E se boquiabre com a resposta: “moro na porta ao lado da sua”.  Não é culpa dela. O casal se mudou quando começou a pandemia. Não são lá muito sociáveis, distantes e mascarados. Nunca se viam. Ela logo os apelidou de “espiões da KGB”. Um tanto lúgubres. Agora, ao ter uma vista panorâmica daquele rosto misterioso, como é que ia reconhecer? Mas ainda faltava a cereja do bolo. Do nada, ele soltou a pergunta: “Fazemos muito barulho pra senhora?” Barulho? Como assim? Festas, comemorações, rala e rola, gemidos, cantorias?Não. Claro que não. Ela mal os vê. E então, veio a resposta surpresa: “A senhora nos desculpe, é que eu e minha mulher... nós brigamos muito. Às vezes o pau quebra”.

Quem diria! Os espiões da KGB, sempre sorrateiros e misteriosos têm uma vida doméstica pra lá de movimentada!. Agora que as máscaras caíram, ela vai botar reparo. Em briga de marido e mulher a gente mete a colher, o garfo ou a faca? Precisa decidir.

De qualquer maneira é algo a sacudir a modorra da manhã. Quem sabe possa fazer uma história de detetive? Uma ideia em gestação na falta de coisa melhor. O título já tem. “O mistério mora ao lado”, “Um crime no calor do verão”, ou “Os espiões e a velhinha bisbilhoteira”. Qualquer coisa em tempos de inspiração em baixa.

Eles se despedem. Ele abre a porta do lado e vai brigar com a mulher. Ela abre a porta da direita e dá de cara com a faxineira. As duas têm um casamento disfuncional, vão fazer bodas de prata. Regulam idade, caqueiras e chatices. E estão ficando ranhetas. Implicam uma com a outra.  A patroa corta o barato: “ você não pode comer muito doce. É diabética”. A faxineira: “Não sou não. O médico disse que não tenho diabetes. Só glicose”.  Então tá. Contra fatos não há argumentos.. A patroa se dirige ao quarto e avisa: “já aguei as plantas, agora é só borrifar as folhas”. “O que é borrifar? “ A patroa hesita: “É aspergir”. Piorou. Mas sempre chegam a um denominador comum: “na roça  a gente fala espirrar”. “OK. Então espirre água nas plantas”.

 A coisa está nesse pé de ranhetagens quando a sobrinha pequena chega. Senta-se no sofá, dá um suspiro fundo e solta essa: “tia, eu não devia existir, porque tenho medo de morrer”.

Caracas! Angústia existencial aos 5 anos é brabo! Ela não sabe, mas a única coisa boa sobre a morte é que só se morre uma vez. O amor, por exemplo, é um trem danado. Mata muitas vezes e de formas diferentes sem morrer. Churchill dizia o mesmo da política. O sujeito morre, ressucita, não exatamente depois de 3 dias. Faz malabarismos pra convencer os outros de que está vivo. Às vezes cola, às vezes não. Uma peleja.

Mas a  angustia existencial de uma garotinha de 5 anos tem remédio. A única solução é sorvete de creme com lasquinhas de chocolate. Infalível. No amor e na política só engordam. É a tragédia humana.

 

 

 

Maria Solange Amado Ladeira               01/05/2022

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