Suspense de outono
Solange Amado
A tia começa a sentir sono. Passa vagarosamente a página do
livro. Sofre de um langor outonal. Será que alguém já morreu de preguiça?
O livro, um tijolo de 500 páginas de suspense, foi escrito a
quatro mãos. Não sei de quem foi a péssima ideia. Mas fica evidente que os
autores se revezam. Um escreve o capítulo um, o outro, o dois. E assim
sucessivamente.
De cara, está claro que os capítulos ímpares são mais bem
escritos. O autor tem mais cancha pra coisa. Vai costurando a história de
maneira coerente, e o leitor vai salivando atrás. Os capítulos pares só
avacalham a construção do capítulo
anterior. Criam tantos personagens novos que a memória idosa da tia, mais
chegada a uma cadeira de balanço, tem dificuldade em fixar. Desfilam bandidos
em inglês, búlgaro, croata, russo e quem mais vier.
Por enquanto, a polícia de Nova York está atrás de um ladrão
que já roubou onze caixas-rápidos em Manhattan. As câmeras de segurança não
conseguem pegá-lo. Ele se disfarça muito bem. E no final de cada operação,
mostra o pênis para as câmeras, numa clara atitude de deboche aos tiras
novaiorquinos. Literalmente, mata a cobra e mostra o pau. A mídia vai ao delírio,
a polícia se desespera, e a tia só quer
ver o circo pegar fogo.
A única pista que os homens da lei possuem é que o cara é
circuncidado. O que, vamos e venhamos não é uma informação muito preciosa.
Provavelmente, trata-se de um judeu, o que não é grande coisa, primeiro que a
população judia no país é imensa, e até onde se sabe, não andam pelados pelas
ruas.
OK. Se fosse ficar só nessa trama seria simples. Até a tia
tem umas teorias de como pegar o peladão dos caixas-rápidos. Mas num livro de
500 páginas, haja peladões e caixas-rápidos pra sustentar tantos capítulos! Vai
daí que a memória da tia já começa a fazer água lá pelo décimo capítulo (e são
72!).
Ela não sabe como é que vai gravar quem é quem, ou melhor, quem matou quem, qual
país traiu o outro, quem era amante de quem. E por que. É um ninho de ratos.
Fede, mas é bom. Pelo menos a tia, que tem um gosto duvidoso, ama esse bas
fond. Marguerite Duras também. Ela tem até um livro chamado “Outsider”. Gosta
pra caramba dessas quebradas. Ambas, Marguerite Duras e a tia detestam pessoas
respeitáveis e impolutas. Tirante Madre Tereza de Calcutá, é claro.
Alguém perguntaria o
que uma coisa tem a ver com a outra. Marguerite Duras vivia em Paris,
bebia horrores, era talentosa e dava uma banana pra o mundo. A tia vive em
Belzonte e come banana. A semelhança é pífia, tirante a de gostarem de
histórias de detetive e de anti-heróis na vida.
Então é isso, leitores, a curiosidade matou um gato.
Recolham-se! Ainda faltam 62 ca
pítulos. Se forem bonzinhos, ela revela na próxima semana a
identidade do circuncidado. Por enquanto, vem aí o décimo primeiro capítulo,
que é ímpar, portanto promete alguma novidade.
Só vai adiantar que já teve uma satisfação perversa no
capítulo cinco. O detetive-chefe, herói, másculo e quase incorruptível da
Polícia de NY revelou-se tão desastrado na cozinha quanto ela mesma. Ninguém é
perfeito. Ô glória!
Maria Solange Amado Ladeira 07/04/2021
www.versiprosear.blogspot.com.br
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