Viver em pecado

 

Viver em pecado

Solange Amado

 

Ela abre os olhos para o mundo. Já perdeu a noção dos dias. Tanto faz. Mas por um capricho do seu senso de orientação, sabe que é sexta-feira. Sempre soube que é sexta-feira como num passe de mágica. Ou da sua preguiça. É dia da faxineira. Não precisa fazer a cama, não precisa lavar as vasilhas, nem tirar a poeira dos móveis, nem aguar as plantas. Sem culpa.

Hoje não tem a mãe internalizada dando ordens: não deixe a cama desarrumada! Pratos lavados! Nem sonhe em ficar de pijama! E ela vai no piloto automático. Mas não hoje. É sexta-feira. Dia da faxineira.  Que, por sinal, toca a campainha. Ô benção! E ela  vai abrir a porta ainda de pijama.

As duas vão envelhecendo juntas como num casamento mambembe, há pelo menos 30 anos.

A mulher entra e de chofre solta esse nonsense: “Você sabe, né? Que antes de transar tem de ter casamento!”. A patroa sabe direitinho de onde saiu a abordagem intempestiva. Na véspera, ela havia telefonado tarde da noite. A velha senhora já havia se recolhido ao leito e via uma partida de vôlei na TV. No intervalo entre os sets, um cara tecia seus comentários. Ela, a patroa, já está ficando expert; sabe quando há um toque na rede, invasão por baixo, por cima, bola fora, bola dentro, dois toques, discute com os comentaristas e espinafra os jogadores quando sacam pra fora. E diverge da arbitragem. Em alto e bom som. Que seja. Fala sozinha sim. E quem não fala sozinho nos dias de hoje que atire a primeira pedra!

Mas voltemos à afirmação intempestiva da faxineira. Por certo ela dormiu com uma pulga atrás da orelha. Macacos me mordam se a patroa não tinha uma companhia noturna!...

Ao atender ao telefone na véspera, a idosa estava no meio de uma argumentação com o juiz de linha. Claro ele marcou um ponto injusto contra o seu time. Ela levou o fone às orelhas no meio de uma diatribe indignada contra aquele senhor. Do outro lado, a faxineira perguntou: “Onde você está?”. “Na minha cama, uai!”. Foi a resposta. “Quem está aí com você?”. “Meu travesseiro, oras!”.  Fez-se um silêncio incômodo, a faxineira deu o recado e desligou rapidinho nem um pouco convencida.

Agora, suas suspeitas se materializavam numa declaração estapafúrdia.  Quem será que a patroa estava espinafrando na véspera? Ela até sabe que a velha senhora nunca bateu bem dos pinos, mas com o passar dos anos seus arroubos vinham se acalmando. Pouco provável essa aventura sexual noturna. Mas não custava avisar. Sexo sem casamento é viver em pecado.

A patroa não deixou por menos: “Quem lhe disse isso?”. “A Bibra”, foi a resposta sucinta. “Você leu a Bíblia?” (ela não sabe ler). “Não, mas o pastor lê e conta pra gente. Se transar sem casamento vai ter de acertar as contas com o Senhor!”. “Bem”, a patroa ponderou: “você tem uma quantidade de netos e nenhuma das suas filhas se casou”. “É. Elas vivem em pecado!”. Mas a patroa não ia entregar a rapadura assim fácil. “Uai, e Adão e Eva, como iam se casar se não existia padre nem pastor? Como fizeram pra se reproduzir?”. Houve um longo silêncio, então ela soltou essa pérola: “Mas eles eram casados no cartório!”.

Bem, todos sabem, não é de bom tom ficar rindo nesses tempos tão negros, sua amiga já avisou. Mas, como fazer quando a piada cai prontinha no seu colo? Sem chance. Não é culpa dela.

 

 

 

 

 

Maria Solange Amado Ladeira           - 13/04/2021

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