Um mundo FOU

 

Um mundo FOU!

Solange Amado

Hoje a coisa tá braba. Ela se senta no quarto com algumas folhas de rascunho, uma caneta e zero ideias. Fixa o horizonte e espera que o Espírito Santo baixe. Precisa produzir uma crônica, um verso, um reverso, qualquer coisa pelamor de Deus. Mas os deuses da inspiração não se comovem. Mastiga a ponta da caneta e o olhar continua perdido no horizonte. Vai ver, o tempo comeu suas ideias. Aí babau.

É quando sua faxineira abre a porta com o aspirador de pó na mão, e a encontra com esse olhar bestificado. Espia desconfiada e começa um barulhão dos diabos chupando mais ainda o pó e as teias de aranha da cabeça da patroa. Esta protesta: “Poxa! Não vê que estou trabalhando?” “Trabaiando no que?”. “Pensando!”. “E pensar é algum trabaio?”. Lá vão elas outra vez.

A “minina” dela também pensa vez em quando. Com um tanto de papel, caneta, faz conta de “vai um” e esparrama uns escritos assim que nem a patroa. Mas é mais esperta, não fica assim “oiando” pro ar. Afinal tá no quinto ano. Da Faculdade. A patroa tenta saber que diabo de curso é esse 5 em 1. Começou  no início e acaba no fim desse ano. E ela pensa muito, com as “foia nas mão, igualim a ocê”. A velha senhora toma nota. Vai ver ainda pode trocar umas figurinhas  com a moça do 5 em 1.

A mão que maneja o aspirador não se abala e a língua não para. A curiosidade também. Enfeitando a estante, tem uma bandejinha que a senhora trouxe da França na qual está escrito: “Il n’est pas obligatoire d’être fou pour travailler ici, mas ça aide”.”Não é obrigatório ser louco para trabalhar aqui, mas isso ajuda”.  Ela remove a bandeja, tira a poeira e coloca no lugar de cabeça pra baixo. Torna a pegar e a coloca de cabeça pra cima. Não está satisfeita. Bota de novo de cabeça pra baixo. Não sabe ler, mas “conhece as letra”. Fica um tempo tentando decifrar aquele mistério antes que ele a devore. A patroa se diverte. E ela resmunga: “esse trem tá torto!”. “Torto como?” Quer saber a senhora. “Assim de banda. Essa língua é torta. Uma letra não rima com outra. Não dá liga. Tem base não. Como é que eu vou botar as coisas no lugar certo? Isso aqui é O. Eu sei.” Aponta pra palavra “obligatoire””. “Quer dizer obrigatório”, diz a patroa. “Mas as letra estão fora do lugar”, teima ela.  Aponta para um livro, “Deuil” . “Isso quer dizer o quê?” “Luto” diz a senhora. “Te peguei! Qualquer bobo sabe que luto começa com L!”.

Melhor fazer uma pausa. Desse mato não vai sair coelho. Nem desse diálogo, nem da cachola da patroa. Obligatoire é mesmo um banho pra limpar essa teia de aranha que virou o  cérebro, e essa língua torta que não endireita com nenhuma explicação.

Banho tomado, a patroa olha pra cima. A estante arrumadinha e todos os livros de cabeça pra baixo. Suspiro. A velha senhora, com os joelhos bambos se encarapita no alto da escada pra colocar em ordem “as letra”.

Lá embaixo, a faxineira ainda tenta decifrar a frase da bandeja.  Agora, a palavra misteriosa é FOU. E quando a patroa lê pra ela, ”louco”, toma uma invertida.  “Vai me enganar,isso é palavrão! Essa língua só tem palavrão! O mundo tá perdido”!

Não se sabe se a alma, mas a patroa sabe que o corpo tá limpinho, acabou de sair do banho, e concorda: O mundo tá FU. E mal pago. Além disso, fuleiro, mequetrefe, torto, manco, de banda. Aliás, de bandando, bandejando de tão FU.

É o que temos pra hoje. Uma crônica FU e mequetrefe que não chegou a lugar nenhum, mas a casa ficou limpa. Até à próxima semana.

 

 

 

 

Maria Solange Amado Ladeira              19/07/2020

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