O alemão
Solange Amado
A amiga lhe deixa na portaria um livro fininho do Fernando
Pessoa. Não é dos seus poetas preferidos. Fez pouco do livreto. Não prometia
nada. Deixa-o de lado.
À noite, a mesma amiga telefona e repete pela vigésima vez
uma história qualquer. Caracas! Que coisa tensa. Aquele alemão alto e loiro, o Alzheimer vem
ganhando terreno cada vez mais no seu galinheiro. Negócio preocupante.
E se ele começar a flertar
com ela? Vade retro! Só que não tem escolha. O alemão e o corona andam
disputando sua faixa etária. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.
A única certeza é que eles andam pelas imediações. Noite
dessas, chegou da rua um pouco além de uma hora respeitável para uma senhora
idosa. O porteiro, surpreendentemente
estava fora do posto, e a escuridão atrás dela era ameaçadora. Enfiou o dedo na
campainha e o porteiro surge esbaforido: “Por favor, me desculpe. Seu vizinho
de cima (um velhinho com idade indecifrável) vai sempre a esta hora levar o
lixo pra garagem. A gente tem de ficar vigiando pela câmera. Na hora de voltar
ele se perde e fica vagando pelos andares”. Santa Virgem das Virgens! Ainda bem que ela
não leva lixo pra garagem, muito menos em horas remotas. Mas ela e o velhinho
têm em comum os joelhos cambetas. Um incômodo que os irmana.
Cala-te boca! O alemão ontem deu uma de desaforado. Mostrou
que não há segurança. Na hora de dormir ela colocou uma caneca de café com
leite no microondas, enfileirou em cima da mesa os três remedinhos da noite,
apagou a luz, pegou um livro e foi para o leito. Dia seguinte, toca a procurar
a caneca. A danada se escondeu no microondas e os três comprimidos continuavam
enfileirados em cima da mesa. Não é que o alemão passou a conversa mole nela e
a levou pra cama? Não há certeza. Ela não se recorda se a noite deu algum
caldo.
Resta-lhe a cozinha. Aí sim. Tem uma escolha: entre o
brócolis e o repolho. Faz uma careta. Sem chance pro repolho. Tem muitas
camadas. Muito parecido com os políticos brasileiros. Não há como confiar. E
alemão é fissurado em repolho. Melhor não arriscar. O brócolis é um arbusto
mais simpático, pequeno e modesto. Não convence muito, que nem o chuchu. Sem
gosto. Mas pelo menos, ninguém é passado pra trás por um brócolis. Isso já é
uma garantia. E é bom pra saúde, diz o Google. É preciso acreditar. É preciso
ter esperança. Se não na sua memória, pelo menos num legume ou numa hortaliça.
Ela vai, pois, de brócolis.
Pelo sim pelo não, comprou um timer. E hoje fez café. Botou a
água pra ferver, pegou o timer, um livro
sobre o Ossama Binladen (a cultura inútil ensina que o nome correto é esse) e
foi pro Afeganistão. Quase teve um ataque cardíaco quando o timer começou a
tocar alucinadamente. Pensou que fosse a metralhadora do taliban. Mas valeu. O
timer é um instrumento valioso quando a memória vai pro brejo.
E aí, a solução foi pegar o livreco do Fernando Pessoa. Já
que a memória anda se escafedendo, o alemão não lhe dá tréguas em seu assédio
sexual, a melancolia, a dúvida e a insegurança a cobrem soturnamente como uma
burca, nada como desenterrar esses versos de Pessoa:
“Se depois de eu morrer
Quiserem escrever minha biografia
Não há nada mais simples
Tem só duas datas –
A da minha nascença e a da minha morte
Entre uma e outra, todos os dias são meus”.
Pelo menos por enquanto. Sem garantias.
Maria Solange Amado Ladeira -
27/08/2021
www.versiprosear.blogspot.com.br
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