Decepções tão desimportantes
Solange Amado
A vida sabe decepcionar com força. Sabe puxar o tapete. Sabe
botar alguém na maior saia justa. Com calma, na maior cara de pau. Sabe
surpreender. A gente bota máscara, blinda os sentimentos, faz defesa pessoal na
Academia, surra saco de areia cada vez com mais força, mas não adianta. Um belo
dia a vida vem e lhe dá uma rasteira básica. Às vezes tem conserto. Às vezes
você fica lá no chão. Não há mais tempo.
A tia sabe disso. De repente a campainha toca. Na porta está
seu amigo, bonito, alto, forte, loiro, atlético. Podem até pensar, mas não é o
Alzheimer. Longe disso. Apenas um homem mascarado, que depõe as armas diante
desse diabólico vírus chinês, que nenhum “plepalo” físico dá conta de
enfrentar.
Então, ele faz um gesto. Tira a máscara. E ela quase cai dura.
Caracas!. Sem prática de andar com essa diaba dessa focinheira, ele tropeça e
cai na rua. Do alto de seus metro e noventa, cai de cara no asfalto. Quebra a
mandíbula, os dentes, abre o queixo. Perde sangue e muito da sua autoestima. E
o rombo no bolso é incalculável. Agora
anda se parecendo com o célebre personagem de cinema, o Hannibal Canibal. Cheio
de ferrinhos na boca. Tomando água no canudinho. Não é só a família real
britânica que cai do cavalo. A coisa anda feia.
OK. Eles vão pra cantina da Academia. Lá quem impera é o Tim,
uma doce criatura, cujo único senão é ser atleticano, mas é manso, e eles
relevam esse defeito.
De repente alguém resolve fazer um joguinho. Anota-se o nome
de todo mundo. E aí vem a surpresa: “qual é o seu nome, Tim?” Ele se ruboriza
todo e responde: “Tim”. “Não, o seu nome verdadeiro!”. “Valdete”, foi a
resposta. O pai lhe fez essa sacanagem. Ô vida!
É então que a tia se lembra do livro que acabou de ler:
“Filhos de nazistas”. Rudolf Hess, o vice de Hitler, o baba ovo mais famoso do
Fuhrer, teve um único filho. Quando o garoto nasceu, o pai, orgulhoso daquele
belo exemplar da mais pura raça ariana, decretou que o filho seria um gênio da
música, não fazia por menos. O pobre garoto dormia e acordava ao som de música
clássica, mais especificamente, de Wagner, o preferido de Hitler. O pai exigiu
que cada prefeito, mesmo dos cantões mais longínquos da Alemanha, mandasse um
saquinho de terra que foi colocado debaixo do berço do filho, não perguntem por
que. Mas esse encantamento durou pouco. Quando o menino tinha 4 anos, a guerra
acabou, o pai é preso, condenado à prisão perpétua, pelo Tribunal de
Nuremberg, sem direito a visitas. Sem
entender nada, o futuro gênio musical passou a ser uma criatura execrada, um
“filho de nazista”. Tudo conforme o figurino do fanatismo. A família opta
então, por morar em um vilarejo onde não acontece nada, ninguém está preocupado
com “quem é quem”, e o único acontecimento de monta era o caminhão de lixo que
passava uma vez por dia. Lá da prisão, o pai continua escrevendo pra o filho,
exortando-o a ser um bom ariano. E quando o menino é finalmente alfabetizado, o
pai orgulhoso escreve perguntando: “o que você quer ser quando crescer?” E a
resposta veio rápida: “Motorista de caminhão de lixo!” .
Nem realizou seu sonho. Segundo conta a história, foi apenas
um mortal comum, às voltas com o fardo, pela vida afora, de ser filho de um
criminoso fanático.
A tia continua filosofando sobre essas “pegadinhas” da vida,
quando o vizinho a chama desesperado. O filho de 15 anos ficou esquisito de
repente; trancou-se no quarto justamente no dia do seu primeiro encontro com a
nova namoradinha. Nada de papo. Toda a família apreensiva.
A tia matou a charada, assim que penetrou naquele androceu.
Uma linda e próspera espinha pairava orgulhosa na ponta do nariz do jovem
enamorado. A vida pregando peças! Mas pelo menos ele não se chama Valdete.
De qualquer maneira, hoje tudo isso é tão desimportante! No
momento estamos todos irmanados na grande rasteira que um vírus chinês nos passou.
Somos todos Valdete!
Maria Solange Amado Ladeira
09/06/2020
www.versiprosear.blogspot.com.br
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