A pandemia e o pandemônio mental








A pandemia e o pandemônio mental
Solange Amado

A moradora do décimo primeiro andar tem uma humilde teoria pra esse pandemônio em que virou o mundo, o país e a sua cabeça. Ninguém vai botar reparo, mas não importa. É só uma teoria dentre muitas. A Anvisa ainda não aprovou. E daí? A Anvisa não visa nada além do próprio bolso.
Então lá vai: A roubalheira no país, nos últimos anos, atingiu níveis tão estratosféricos que cavou um buraco cada vez mais fundo com o passar dos anos. E à medida que o buraco foi atingindo proporções estapafúrdias, atravessou o centro da terra e atingiu a China. Deu  no que deu. O vírus chinês não gostou  da interferência em seu país. Vai daí que soltou a franga, se  enfiou pelo buraco afora e atingiu o outro lado do mundo, como quem diz, quem mandou?
Cavar buracos nunca foi uma boa ideia. Ainda bem que ela só circula pela borda. Às vezes transborda, às vezes tropeça, mas sempre se sustenta, não cai no buraco, que no seu caso não chega até à China. Como não é boba nem nada, providenciou uma rede na entrada daquele poço fundo. Infelizmente, o vírus passa pelas tramas e vem fazer dramas, não só no corpo, mas na cabeça dos idosos. De qualquer maneira, sua rede, tecida com carinho sempre a protegeu no momento X em que a vaca ameaça ir pro brejo. Há controvérsias, mas a tia acredita que ainda não está gagá.
Isso até pouco tempo. Sua crença anda abalada. Essa rede vem fazendo água, ameaça rasgar de vez. Se do lado de fora, a coisa desandou de vez, do lado de dentro, a cachola da moradora ainda estava firme nos trilhos. Verdade que ela vem falando cada vez mais com as paredes, com as plantas, com os livros. Mas isso não é propriamente uma novidade, nem é produto da nova idade. É um hábito de longa data. Remonta ao tempo em que seu cérebro ainda era zero bala. O problema é que ultimamente, as plantas estão respondendo, os livros apresentam seus pontos de vista e a discussão vai ficando calorosa. Antes eles só ouviam, agora, estão ficando desaforados. Tico e teco não estão mais em sintonia na sua cabeça.
Ela tem ficado com medo. Antes ela confiava no seu taco.  Sua sanidade era como a Torre de Pisa, torta mas firme. Nunca precisou endireitar.Tinha até um certo charme essa inclinação fora da linha. Que nem o seu país. Todo mundo olha e pensa que ele vai pro brejo de vez. Ledo engano. Ele lá vai claudicando. Não chega a ser uma Branstemp, mas ainda funciona. Meio carunchado, é verdade, meio carcomido, mas com um sol danado de grande, e uma lua que ainda brinca de esconde-esconde pelas montanhas e vai desaguar no mar. Um marzão grande e besta.
Ela não tem essa sorte de poder brilhar e ir desaguar no mar. Mas anda muito claudicante e carunchada. E daí que a sua fé na sua sanidade começou a atolar de vez mês passado, quando uma jovem ficou olhando feio pra ela no supermercado enquanto ela batia papo com a prateleira de queijos – nunca têm o que ela quer – por mais que ela explicasse exatamente o que queria, a prateleira se negava a atendê-la.
Algo no olhar da jovem fez com que ela depusesse as armas. OK. Talvez precisasse de uma consulta com um geriatra. Só talvez. Marcou uma hora pra segunda-feira. Alea jacta est!
Chega a segunda. Ela, se olha no espelho, alta, loira, magra, ainda dava um bom caldo. Botou uma maquiagem discreta, um perfume francês,e um salto 5. Importante causar boa impressão, mostrar que ainda segurava a peteca. 
Pediu um Uber. Carro já na porta. Ela desce o elevador majestosa. E aí a vaca vai pro brejo de vez, quando o porteiro abre o elevador e a cumprimenta: “Bom dia, D. Beatriz, vai dar uma saidinha? Um bonito domingo pra dar um rolé por aí!”




Maria Solange Amado Ladeira         26/05/20               
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