A fuga das meninas








A fuga das meninas
Solange Amado
Foi num domingo à tarde que ela perdeu suas filhas. Todas elas. Talvez a falta de promessas, a monotonia de um domingo à tarde é que tenha precipitado as coisas. Agora, ela estava ali, perdida. Uma mãe sem filhas. E sem filhas, para que serve uma mãe?
A princípio ela não se preocupou. As filhas são adolescentes. E todos sabem como são adolescentes. Sempre querendo algo impossível. Sempre querendo uma liberdade que não existe. Sempre correndo atrás de um sonho impossível. Todo adolescente é um D. Quixote, lutando com os moinhos de vento. Sem o seu rocinante, e nem sempre com um Sancho Pança de prontidão.
Só por isso ela não se preocupou de início. Depois foi ficando tarde. Era um país estranho, ela não sabia se exprimir bem naquela língua. Dependia das filhas. Estas sim, podiam quebrar qualquer galho linguístico.
Foi difícil dar queixa. Ela tentou, mas sem ajuda das filhas ficou quase impossível. A polícia nem fingiu interesse. Disseram que esse desaparecimento era comum. Acontecia com muita frequência. Estavam convictos de que mais dia menos dia, as filhas apareceriam em grande estilo.  Ao que tudo indicava, estavam apenas cheias de enfado.
Na verdade, não se poderia mesmo esperar que policiais, já calejados pela brutalidade dos casos com os quais têm de lidar diariamente, pudessem se sensibilizar profundamente com a angústia dessa mãe lançada repentinamente no silêncio da solidão,  sem a voz das filhas para atravessar a Sodoma e Gomorra em que o mundo se tornou.
A verdade é que não sabia o que fazer. Sem elas seria lançada no nada, no vazio de significado. Elas eram a rede que a sustentavam acima do precipício.
A bem da verdade, não se considerava uma boa mãe. As filhas nunca encontraram nela um porto seguro, um lugar de consistência, um apoio para aquelas pulsões adolescentes tão desorganizadas. A bem da verdade, tinha de admitir, não era uma mãe confiável. Seu barco corria meio solto, de acordo com o vento. Sujeito a chuvas e trovoadas. Não era de se espantar que elas empreendessem essas fugas ocasionalmente.
Em geral elas voltavam com o rabo entre as pernas. E mãe é mãe. Evitava uma bronca gigantesca. Tinha medo de que elas arrepiassem caminho de vez. E se em uma dessas fugas ocasionais acontecesse algo ruim? E se elas resolvessem nunca mais voltar? O que seria dela? Sem as filhas, ela seria apenas alguém sem fala, perdida num mundo hostil.
De início ela não se preocupou. Essas escapadelas eram breves. Crianças sempre voltam pra mamãe quando sentem fome ou frio, ou medo. Mas as meninas cresceram, e quanto mais crescem mais as coisas se invertem. Elas, que eram seus bebês e dependiam tanto dos seus cuidados, batem asas com mais frequência, exploram o mundo, se unem a pessoas mais interessantes, em lugares exóticos. O tempo passa. A mãe fica cada vez mais pra trás, dependendo da arte das suas meninas que só querem alçar voos. Cada vez se torna mais difícil prendê-las num abraço, num laço de amor, num beijo indissolúvel. Mãe e filhas, sem sofrer essa pulsão das coisas, esse vai-e-vem enlouquecedor das coisas vivas e sem garantia, que um dia se fecham e não se abrem mais.
Por enquanto ela espera. Vai esperar sempre.. Sabe que a qualquer hora elas entrarão porta adentro, num tropel alegre e descompromissado. E ela, saudosa, abrirá os braços.
Então, há dois dias, ela abriu os olhos e ali, a seu lado na cama, estavam elas: as palavras. Essas suas meninas tão lindas! Que saudade!!





Maria Solange Amado Ladeira                         05/05/2020
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