A medalha
Solange Amado
A garota abriu o
portão do jardim com cautela. Olhou para ambos os lados. O coração aos pulos.
Trazia na mão uma sacola pesada. Dentro estava o seu segredo. Seu vício
solitário. Prazer e dor ao mesmo tempo. Todo mundo tem seus esqueletos no
armário. Ela não sabia disso. Era apenas uma menininha de 8 anos que devorava
livros. Só isso.
O pai também, a mãe também. Mas isso não contava. Eles eram
adultos e podiam fazer muita coisa que as crianças não podem. Ela era magrela e
pálida. Mas a semelhança com uma intelectual parava por aí. Nem usava óculos.
De quatro-olhos não tinha nada. E adorava brincar com os amigos. Mesmo assim
eles a achavam esquisita. A esquisitice estava ali, dentro da sacola pesada que
ela carregava num abraço apertado a caminho da biblioteca da cidade. Frequentava o lugar havia
um ano. Tudo na moita.
Definitivamente, não era de bom tom essa mania de enfiar a
cara nas “Reinações de Narizinho” por exemplo, quando podia aprontar as suas
próprias reinações pela beira do rio, ou subindo em mangueiras nos quintais
alheios. Não que não o fizesse ocasionalmente, mas às vezes, o livro lhe
proporcionava saltos tão maiores e tão mais altos, que a escolha pendia para o
lado deles.
Acontece que nenhuma criança pequena podia entender esse
gosto funesto de trocar uma diversão garantida por meia dúzia de páginas de um
livro bolorento. E eles pegavam pesado. Sempre que tinham oportunidade,
escondiam, rasgavam e tentavam destruir os livros que nem eram dela.
A meninada tinha o péssimo hábito de aparecer de supetão na
sua casa no melhor da festa, ou do capítulo. E impunham a escolha de Sofia: o
livro ou nós, as brincadeiras na poeira
da tarde tórrida. A coisa foi chegando a uma encruzilhada impossível. As
crianças não aceitavam essa infidelidade. E eram agressivas.
Ela queria os dois: os livros e os amigos. Mas eles eram
incompatíveis. Os livros não criavam caso. Estavam sempre lá. Comiam pelas
beiradinhas. Na força da paciência e do silêncio se insinuavam. E quanto mais
ela crescia, mais era conquistada por aquela fidelidade sem exigências.
Os amigos ao contrário. Ficavam na maior marcação. E armavam
uma parede para protegê-la desse vício nocivo. A coisa explodiu quando a brincadeira de caçar tanajuras estava
no auge. O times se dividiam e corriam pela rua, prendendo os bichinhos nos
vidros fornecidos pelas mães. O time que pegasse mais tanajuras ganhava um
bocado de regalias.
Claro. O time dela perdeu. Na hora da contagem das tanajuras,
ela foi encontrada dentro de casa, na cadeira de balanço, com o vidro de tanajuras
quase vazio, caçando baleias. Devorando “Moby Dick” na modorra da tarde.
Armou-se uma tragédia grega com essa traição. Quase foi esfolada viva.
Desse dia em diante, o combate ao seu “vício solitário” ficou
mais agressivo. Ela escondia os livros na sua pasta da escola, dentro da blusa,
preso ao cós da saia quando ia à biblioteca. Mas se descobertos, eram jogados
cruelmente na poeira da rua ou na lama do chão, eram rabiscados, e ela tinha de
lutar bravamente pra impedir esse vandalismo. Ela os limpava caprichosamente e
rezava para que o bibliotecária não visse os estragos.
Passou a carregar os livros na sacola de compras da casa. Um
esforço subir a ladeira íngreme com a sacola pesada por três quarteirões, O
livros no fundo e algumas laranjas por cima. Três quarteirões cozida aos muros
das casas e com o coração aos saltos.
Acabou por se sentir culpada.
A esquisitice devorando sua autoestima. Não podia ser assim tão ruim,
pensava; o pai comprava toneladas de livros e revistas. Alimentava essa culpa.
Um traço perverso? Do pai ou dela?
E a coisa foi indo nessa toada de dúvidas, angústias e
prazer. Toda semana subindo a ladeira íngreme escondendo seu pecado dentro de
uma sacola pesada. Laranjas e livros. Até depositar seu tesouro na mesa da
bibliotecária. Naquele oásis de prateleiras cheias estava à salvo.
A coisa aconteceu num dia comum, de um mês comum. Era dia do
livro. Ela sabia porque tinha cartazes espalhados por toda a biblioteca. E dalí
a pouco teria de atravessar a zona perigosa do agrião, com a cintura gorda de
livros.
Foi só depositar seu troféu na mesa da bibliotecária e notou
a mesa posta. Bolos e guaranás. A mãe surgiu de trás da porta arrebanhando toda
a molecada. Caramba! Dessa vez a encrenca era grossa! E ainda tinha a diretora
da Escola e a Secretaria da Educação, embora ela não soubesse bem pra que
servia a pessoa em questão. Minha Nossa! E tome discurso! A molecada impaciente
olhava a mesa de doces e o guaraná geladinho na tarde senegalesca. E ela lá, na
moita. Não era seu aniversário. Disso tinha certeza.
E foi aí que surgiu aquele objeto. A medalha. Muito dourada.
Um ouro duvidoso que oxidou em pouquíssimo tempo. Primeiro lugar e o seu nome
embaixo. Mistério resolvido! A leitora mais assídua da biblioteca naquele ano.
Grande feito! A mãe, orgulhosa, pendurou aquele cebolão com uma fita
verde-amarela no seu pescoço. Era dia do livro, claro. Ela olhava de esguela,
desconfiada, os seus amiguinhos, aquele exército de Brancaleone empoeirado,
destoando totalmente do ambiente.
Será que agora ela teria de desfilar no Sete de Setembro?
Tinha um sujeito na cidade que desfilava todo ano. Ele ganhou uma medalha
daquelas ao subir um morro, na Itália, durante a guerra, e vencer o inimigo,
fincando a bandeira do Brasil lá no alto. E todo ano, ele marchava com o
uniforme todo arrumadinho e a medalha no pescoço.
Ela também subia o morro toda a semana, lutando contra os
inimigos pra depositar seu troféu, ileso, na mesa da bibliotecária.
Ninguém a convidou a desfilar no Sete de Setembro, mas ganhou
o respeito da molecada da rua. Eles continuaram a não entender a utilidade de
viver com a cara enfiada num livro. Mas se todo ano houvesse guaraná geladinho
com bolo de graça pra comemorar aquela
esquisitice, então, tava tudo bem.
E mais, daquele dia em diante, havia sempre um ajudante de
ordens para carregar morro acima sua sacola pesada. E lá iam os dois marchando.
Dom Quixote e Sancho Pança. Todo mundo carece vencer os moinhos de vento, ou um
Monte Castelo particular.
Maria Solange Amado Ladeira 21/04/2020
www.versiprosear.blogspot.com.br
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