Os tiranossauros







Os tiranossauros
Solange Amado

O garotinho se aproxima de mim com ar muito sério e diz: “Sabia que você não deve se aproximar muito de um tiranossauros rex? Ou ele come você. Ele é carnívoro!” Prometo solenemente manter distância.
Mas é tarde. Sempre tentei ficar afastada dos tiranossauros rex, que pululam a classe política do meu país, mas há anos eles vêm me comendo aos pouquinhos. Na verdade, comendo a nós todos com um apetite voraz, cada vez maior. Uma mordida aqui, outra acolá, e a gente desliza goela abaixo deles, tal qual um corpo na enxurrada. Onde está o freio?
Ao contrário do outro animal que o garotinho conhece, estes negam que são carnívoros. Patéticos! São todos virgens num puteiro. Ou dizem que são. E nós acreditamos porque é mais fácil.
Olho para o pequeno, com seu aviso tão ingênuo e sou tomada pela nostalgia. Como dizem os franceses, sou possuída pelo “mal de pays”, a saudade de casa.  Do país que está dentro de mim. Vai sempre estar. Meu país das mangueiras altas, dos rios largos, do povo ingênuo e amigável, da D. Dorcelina passando roupa com o ferro em brasa e nos levando pra passar a tarde no seu barraco minúsculo. Bolo e refrigerante na sua mesinha de toalha xadrez. Parecia aniversário. Esse Brasil simples e generoso estará sempre dentro de mim. O país onde os tiranossauros rex ficavam bem guardados na fantasia de um garotinho pequeno.
Infelizmente, esse país não existe mais. Os tiranosssauros rex carnívoros saltaram da imaginação das criancinhas e se tornaram reais na condução desse vasto país. E aí, sofro do “mal de pays”. Aquele banzo de desesperança.
Uma vez, esse mesmo garotinho precavido ficou furioso comigo. No meio de uma partida de “Mico Preto”, eu espiei as cartas do seu irmãozinho mais novo. Confesso que pequei; e só queria encerrar o brinquedo e voltar para o meu livro. Ele percebeu. Paguei caro. Durante um largo tempo, ele me brindou com seu desprezo: “Não brinco mais com pessoas desonestas”. Foi osso me redimir.
Pena que nós, adultos, não tenhamos essa sabedoria. Continuamos a brincar com quem nos deu largas provas de desonestidade. E ainda os festejamos: “quem não cola não sai da escola”, “na prisão é a lei do cão”, “quem tá na chuva é pra se molhar”. E assim, a gente vai esticando a corda da honestidade. Até que de tão bamba as calças caem, e aí não tem nada a se fazer.
Stefan Zweig, o famoso escritor, fugindo do inferno em que se transformou o Império Autro-húngaro após a primeira grande guerra, se refugiou no Brasil onde tirou a própria vida. Era uma personalidade deprimida, com enormes saudades da pátria e magoado com as criticas ao seu livro “Brasil, país do futuro”. Se foi ou não para agradar Getúlio Vargas que lhe deu um visto de permanência. Se foi ou não por interesse, nunca saberemos, e não importa. O fato é que seu último cartão de Ano Novo a amigos e parentes, trazia essa estrofe do poema épico “Os Lusíadas”, de Camões:
No mar tanta tormenta, e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida
Na terra, tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida:
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida?
Que não se arme e se indigne o Céu sereno,
Contra um bicho da terra tão pequeno”.
E nós estamos no olho desse mar revolto. Embarcados nessa nau sem rumo, expostos a tanta tormenta e tanto dano. Não sei qual é a saída.
Mas prometi ao garotinho. Vou ficar longe dos tiranossauros rex e não brinco mais com pessoas desonestas que espiam as cartas dos companheiros de jogo.


Maria Solange Amado Ladeira             07/04/20

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