Lucão






Lucão
Solange Amado

Era Luiz. Luca para os íntimos. Passou a ser Lucão para a sua turma da rua. Não por seu tamanho. Era pequeno e gordinho, mas por sua valentia e liderança incondicionais. Vivia perdido pelas ruas da sua pequena cidade.
A criançada se esbaldava, movimentando-se em bandos pela cidade. Não havia o medo-pânico de que os filhos fossem raptados, morressem afogados no rio que passava no fundo dos quintais. O play ground era ali, às margens do rio, onde hoje há uma avenida larga com muitos carros, e o rio agora corre  esmagado entre paredes de concreto Não dá mais pra brincar livre, leve e solto. Mas houve um tempo feliz.
Não havia celulares, e as câmeras de monitoramento eram as comadres, vizinhos e parentes. E eram muito mais eficientes. Se a turma resolvesse se reunir no adro da Igreja (claro, liderados pelo Lucão) e jogar pedra nos carros ( raros)  que passavam na rua embaixo; com a precisão de que dois e dois são quatro, todos os pais saberiam em cinco minutos. “Seu Djalma” farmacêutico, bem ali na esquina, tinha olhos de lince.
A Carteira de Identidade da pirralhada tinha só um item: “Fi di quem?”. O nome era dispensável. Exceto a do Luca que incluía o dele. Impossível ignorar que aquela pessoinha tão jovem tinha um diferencial. Conseguia liderar uma turma de pivetes, alguns com mais que o dobro da sua idade. Meninos e meninas. Alí  ninguém livrava a cara de ninguém. Ajoelhou tem de rezar. Ninguém se preocupava com esse negócio de empoderamento feminino, bullying e outras milongas. “Vem se você é homem!”. Era o mote pra gente entrar rapidinho no Clube do Bolinha. O critério era a competência. Chamar um garoto pra briga era mais uma esperteza. Um blefe das meninas. Todas sabiam que eles não iam encarar. Bater em mulher era o suprassumo do vexame. Vá entender! E por que não tirar proveito disso?
Mas voltemos ao Lucão. Ele fazia tudo o que desse na telha, e todos obedeciam, inclusive o pai e a mãe que não encontravam jeito de conter a energia e a vontade inquebrantável do filho.
Uma das histórias que viraram folclore na cidade remonta à sua festa de aniversário de 4 anos. Ele vetou a frescura de crianças enfatiotadas, educadinhas e contidas, monitoradas por papais e mamães. Queria convidar todos os seus amiguinhos, a pivetada toda da rua, pobres, ricos, pretos e brancos. Alguns nem tinham uma fatiota e viviam com uma chinela havaiana gasta. Ele queria TODOS, mesmo aqueles cuja reputação era um tanto duvidosa. A mãe concordou.
Para entrar na casa do Lucão, a gente atravessava um corredor comprido e estreito até chegar à porta da sala. Naquela época não havia esse negócio de Buffet infantil. Mães, avós e vizinhas iam pra cozinha e faziam uma mesa farta de doces, salgados e um bolo gigante. Depois do parabéns, a rua inteira virava salão de festas. A gente se acabava no pique-esconde, pulando corda, jogando bola, etc.
Hora aprazada para a festa. Adultos se esfalfando na cozinha e arrumando a mesa de doces. E cadê os convidados? Só alguns gatos pingados na sala, tímidos, altamente desconfortáveis, com seu presentinho nas mãos. A mãe foi verificar o que estava acontecendo e encontrou seu rebento com os braços esticados, cada mão tocando um lado da parede do corredor barrando a passagem. A fila na frente dele era enorme. E ele fazia sua própria triagem: “Tem “pesente”? “Enta”!” “Não tem pesente?” Não “enta”! Era inflexível. Foi preciso uma grande negociação para que a porteira fosse aberta. E aí a festa bombou!
Mas a cereja do bolo, marca registrada do Lucão, veio uns tempos depois desse aniversário. A mãe pediu que ele fosse à padaria da esquina comprar pão. Deu a ele o que corresponderia hoje a uma nota de 100 reais. E recomendou muito: “Olhe, isso é muito dinheiro. Tenha cuidado. Não vá perder”.Foi como dar banana pra macaco. Claro que ele ia tirar uma onda pela rua. Tanta riqueza era pra ser mostrada. Lá foi ele com a nota balançando ao vento e fazendo propaganda da sua grana. Não demorou e ele retorna chorando. Um espertinho passou, surrupiou a sua nota e botou sebo nas canelas. A mãe foi à delegacia e deu queixa.
Agitação. O delegado botou a rádio patrulha na rua com ordens de recolher todos os negrinhos conhecidos no pedaço por praticarem pequenos delitos. Colocou todo mundo enfileirado contra a parede e chamou o Lucão para o reconhecimento: “Qual desses roubou a sua nota?” Ele deu uma boa olhada na criançada  e cortou com uma faca afiada as esperanças do delegado: “Ih! Pode mandar todo mundo embora! Não era “pêto”, era “banco”!
Virou um mote na cidade. E valeu como um tratado. Até hoje, na minha família, quando alguém diz alguma coisa que cheira a preconceito, tem sempre alguém que nos recorda: “Não era “pêto”. Era “banco”!

Maria Solange Amado Ladeira         - 31/03/2020
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