O Waterloo feminino







O Waterloo feminino
Solange Amado
O edifício é simpático. Funciona com precisão militar. Tem hora pra botar o lixo nos containers, hora pra sair entulho de obra. Hora pra subir ou descer móvel no elevador, cachorro, gente, trouxa de roupa. Tem um segundo portão de entrada, que é uma rampa, supostamente para atender pessoas com necessidades especiais, idosos ou carrinhos de feira pesados. Só que não. Os carrinhos podem sujar o chão imaculado, que os faxineiros lisam todos os dias com o fervor de namorados apaixonados. E as bengalas marcam o piso. Até as baratinhas já se acostumaram a esse funcionamento germânico. Dia do veneno nos corredores elas dão um jeito de se escafeder para dentro dos apartamentos mais desavisados.
A moradora do décimo primeiro andar tem mais 4 vizinhos. De um lado um casal misterioso, que deve ser espião da KGB. Entra e sai furtivamente, Jamais sorri. Um leve aceno de cabeça é tudo o que se obtém.
De frente um casal sem filhos. Trabalha muito. Sempre correndo, chegando ou saindo. Trocam-se pequenas fofocas na correria . Mas o marido é um guapo mancebo. Vale botar um reparo mais atento.
À esquerda tem a juventude em flor, um lindo garoto, que anda de bicicleta e estuda essas modernidades de programação de computador, etc. Já teve três parceiras dividindo o mesmo teto, mas acha que mulher é um bicho tão complicado que preferiu depor as armas. Virou ermitão.
Mas o outro apartamento é onde mora o perigo. O casal de meia idade que vive ali tem uma vida ocupada, cara sofrida e cansada e um casal de filhos. Uma cruz! O garoto é “dark”. O sol comendo lá fora, um calor senegalesco e o rapazinho desce o elevador com botas militares pretas até quase os joelhos, camisa preta, calça preta, cueca (se supõe) preta e um capotão indo até os pés, claro, preto; pearcings nas orelhas, no nariz, nos lábios e onde mais houver uma superfície macia o suficiente pra sapecar um gancho qualquer. É bom. É a única coisa que o difere de Rasputin. O cabelo é igual. E sujo.
Uma vez a vizinha lhe perguntou porque se vestia assim. “Porque eu sou dark”, foi a resposta. “E o que é ser “dark”? Ela teimou. “É uma filosofia”. “E o que essa filosofia preconiza?” Pergunta errada. Ele não sabia o que é “preconiza”. E ficou por aí.
A moça não. A moça é politizada. Feminista militante e ativa, cheia de tatuagens de slogans da hora. Não trabalha e não há muito tempo para os estudos. Seu tempo é todo ocupado em empoderar a mulher. “Botar ela no comando”, como diz. De quê não se sabe, mas pelo menos não precisa se vestir de preto. Quando muito é só se despir. Dia desses, a mãe se queixou em prantos à vizinha, que a filha desfilou pelada no DA da Escola, com o corpo pintado, em protesto dois em um: Pela liberdade feminina e pela liberdade das artes. Legal.
Mas eis que nossa amiga militante vai fazer um curso em Londres. A vizinha empresta seus casacos e na volta ela se diz entusiasmada com a “resistência” feminina nas terras civilizadas. Conta sobre as belezas de Londres e “en passant” fala da Ponte da Waterloo onde passou de táxi. A vista é linda dalí e  a construção é sólida e caprichada.
Nossa amiga ignorava que a Ponte de Waterloo tem uma história interessante: Foi construída em 1920. Nos anos 40, durante a segunda Guerra, Londres foi cruelmente bombardeada e a ponte totalmente destruída. Importante via de ligação da cidade, precisava  ser reconstruída imediatamente. Mas cadê os homens? Todos na guerra. Não havia mão de obra. Foi então que as mulheres arregaçaram as mangas. A Ponte de Waterloo foi reconstruída totalmente com mão de obra feminina e com tijolos auto limpantes. E mais, foi uma das poucas obras construída rigorosamente dentro do prazo e do orçamento.
A vizinha torce para que a mocinha militante algum dia vá à luta e construa concretamente, tijolo por tijolo o poder da mulher. Sem firulas. É nessa resistência que ela acredita.





Maria Solange Amado Ladeira                        03/03/2020            
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