O furo da memória
Solange Amado
A gente
começa. Não se sabe de onde. Nem para que. Mas a gente começa de algum lugar. É
o que se tem a fazer. Talvez um cheiro, um som, uma imagem, uma
ideia produzindo um comichão na cabeça.
Mas a gente começa.
E aí empaca. Isso é o mais irritante. Uma vez ela fez uma
redação sobre o tema “um furo na parede”. Não se lembra mais desse furo, ou que
palavras usou para se safar da empreitada. Ela era muito nova, mas suas
coleguinhas da época se lembram desse grande feito. Uma até guardou entre a sua
papelada esse furo na parede, mas não se lembra onde o colocou, porque os anos
provocam, aí sim, furos na memória.
E aí é que mora o perigo. Essa noite, quando o cérebro lutava
pra se manter vigilante e não cair no nirvana do sono, ela produziu um texto
que, modéstia às favas, ficou porreta. Mas não teve, nem ânimo nem
ferramenta à vista pra botar no papel esse arroubo de
criatividade. E quando o dia amanhece, ela está aqui, nas brumas da (falta de)
inspiração. O texto genial se escafedeu na noite. Foi só uma flatulência, nem
cheiro deixou.
Do Saramago herdou só o mau humor. Vão todos catar coquinhos,
aqueles que esperam originalidade em todas as horas da vida. Ela não tem nada a
dizer. A gente gasta muito papel com bobagens, muita palavra inútil, muito som
desperdiçado.
Ontem, quando fazia compras numa grande loja, enquanto enchia
o carrinho de escova, shampoo, pasta de dentes, as caixas de som da loja
regurgitavam essa preciosidade:”enquanto você dorme com outro na cama que eu
comprei, eu durmo na rodoviária vendo novela numa TV de 14 polegadas”... Sem
tirar nem pôr. Como é que alguém pode ir pra casa e produzir algo que preste
tendo que se alimentar diariamente desse agrotóxico?
Se na farmácia tivesse Viagra para inspiração, ela comprava.
Uma pílula por dia , garantia de ereção contínua de ideias. E o nascimento de
uma ninhada de textos geniais. Mas não existe tal remédio.
A única vantagem é que sendo apenas uma mulher, ela não tem
escolha: tem de continuar, nem que for na rodoviária, vendo novela numa tv de
14 polegadas.
Verdade que esse bloqueio criativo acontece até com os
gênios. Freud que o diga. A constatação é consoladora, mas não resolve as
coisas. Freud inventou a “cura pela palavra” e ela está mais próxima da
“loucura pela palavra”. Nada faz sentido. Tudo é de uma embaralhante mediocridade.
É isso. Quem esperava coisa melhor depois de uma noite de
arroubo criativo vá caçar sarna pra coçar. Ela não se lembra. Talvez se
dormisse na rodoviária, o Espírito Santo ficasse com dó da sua indigência e
baixasse uma ideia gloriosa. Continuem acreditando e chupando um limão por
dia. Talvez adquira uma gastrite, que
nem ela, talvez brotem ideias. Tudo é possível.
Tem mais. Ela não vai pedir desculpas pela falta de jeito.
Foi uma tentativa honesta.
Na hora do banho talvez dê certo. Debaixo do chuveiro, as
palavras mais limpas e refrescadas talvez desistam do boicote e esse cérebro
que não tem culpa. Nem competência.
Foi mal. Dizem que as palavras são as estrelas e o céu é a
folha na qual se escrevem. Mas tem dia que chove.
Maria Solange Amado Ladeira - 10/03/2020
www.versiprosear.blogspot.com.br
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