Ponto de ruptura






Ponto de ruptura
Solange Amado
A velhota tem um medo cão de baratas. Desde muito pequena. Terror, pânico, pavor, trauma. Caso psiquiátrico mesmo. Não ajudou o avô machão chamar a mulher de “barata”. Somando-se a esse quadro trágico, ela ainda tem medo de alma de outro mundo. E de mula sem cabeça, lobisomem, curupira. Toda noite, durante muito tempo, ela olhava embaixo da cama antes de dormir, se alguns desses personagens estavam se escondendo. Nunca se sabe se na calada da noite eles iam chegar e cráu nela!
Vai daí que após anos e anos de boa psicanálise lacaniana, ela finalmente “atravessou o seu fantasma”. E como ninguém se cura de si mesmo, o resultado foi, digamos,  passável: ela deixou de acreditar no curupira, no lobisomem,  e em mula sem cabeça, mas pelo sim pelo não, não brinca com alma do outro mundo. Nem dorme com os pés de fora. Vai que alguma alma perdida puxa a sua perna, né bebé?
Todo ano, religiosamente, ela manda dedetizar a sua casa. Mas, vocês sabem, esse bicho barata resistiu à bomba atômica, e às vezes, o veneno só produz uma “barato” nelas. E aí, só ficam meio doidonas. As mães sucumbem todas, mas as filhotas, não sei por que cargas d’água apelidadas de “francezinhas” (que Simone de Beauvoir não nos ouça), essas bebezinhas não dão trégua.
Bom. O ano começa com a costumeira guerra baratal. Resolvido o problema, a velhota parte para a sua lista de boas intenções para o ano que entrou. Na verdade, só tem um item: não vai sucumbir ao mi mi mi dos arautos do apocalipse, à chatice e ao mau humor. E aos pequenos contratempos. Vai cortá-los da sua vida com uma faca bem afiada. “Os cães latem e a caravana passa.” Tem muita coisa boa no mundo.
Isso posto, ela parte para seu primeiro dia de “jogo do contente”. Sai a passeio. Desce o elevador que já estava no andar com o cachorro da vizinha, que late e rosna sem parar para ela. Nem te ligo, “os cães latem...” Hay que resistir. Toma o ônibus que para no meio da rua. Consegue por pouco escalar a porta. O chofer xinga a velha e o ônibus, ambos com o mecanismo lento no transito emperrado. A velha se lembra das boas intenções. Hora de descer. O merdinha do motorista fecha a porta em cima dela. Gritaria geral. O cara abre a porta. A idosa faz um inventário: nada quebradol “Vamos em frente no jogo do contente”. Sorriso nos lábios, entra no Shopping e vai direto para livraria “só pra dar uma olhadinha, claro”. O capeta atenta. Ela começa a salivar diante de 700 páginas da Elizabeth Roudinesco. O preço é salgado. Faz um inventário dos seus bens. Tudo OK. Talvez ainda ache um velhinho ricaço por aí. Sai do Shopping com o tijolo dentro de uma sacola plástica.
Lá fora, o céu promete o dilúvio universal, mas dá tempo de ir pra casa a pé aconchegando no peito sua preciosidade. Certo? Errado. Dois quarteirões depois, encontra-se com um ex-colega de Faculdade. Quase 50 anos depois! Eles nunca amarraram a égua no mesmo lugar. O cara tinha tanto tesão por si mesmo, que ela jurava que um dia ele ia se comer. Não comeu. O “melhor texto de Minas, “cuica” do Brasil” como se intitulava, estava ali ao vivo e em cores. Aposentado e com o mesmo discurso “me dei bem, e voce?” O senhor testa mesmo a paciência dos seus filhos...
A velhota se apressa, o grande encontro a atrasou. O dilúvio começa antes que ela  alcance a sua casa. Só falta atravessar a pracinha. A enxurrada desce com força a rua. Ela abraça o livro e vai em frente. Calculou mal. A correnteza é muito forte. Ela se desequilibra e o pacote cai. Lá se foi o livro avenida abaixo. Caracas! Suas boas intenções começam a fazer água. Solta uma dúzia de palavrões, mas atinge a entrada do edifício. Tenta se convencer que o essencial está preservado. Jogo do contente.
Entra em casa molhada até os ossos. Já é noite. Vai tirando a roupa pelo corredor até o quarto. Acende a luz a tempo de ver uma baratinha estonteada se arrastando pra baixo da sua cama.
Aí foi seu ponto de ruptura. A velha senhora sentou-se no sofá da sala e chorou. À merda as boas intenções! Pôrra de vida idiota! Todo mundo pro inferno! Foda-se o jogo do contente.  Ela só queria ser infeliz . Pronto acabou.
Dormiu ali mesmo na porcaria do sofá de dois lugares. Acordou com torcicolo e com ódio da humanidade.  E tem mais: A velha senhora suspendeu poemas sobre flores, borboletas e passarinhos até segunda ordem.



Maria Solange Amado Ladeira     -18/02/2020

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