Dr. Pernilongo
Solange Amado
O Dr. Pernilongo tinha uma sala no fundo de um corredor
escuro. Diziam que ele era bom na cura de birutices. Eu tinha mais ou menos 18
anos e me encaixava nesse perfil. Começava a Faculdade de Jornalismo. Lia
montes de psicanálise. Ganhei de uma pessoa que botava fé na minha doidice, as
“Obras Completas de Freud” . Peguei o canudo e saltei pra psicologia. Gostava
das palavras e de caçar esqueletos no armário. O trabalho de Sherlock do insconsciente
sempre me fascinou.E lá fui pro fundo do corredor frequentar o Dr.
Pernilongo. A alcunha eu coloquei porque
ele era alto, muito magro, cabeça grande e pés imensos. Sempre tive uma tara
por pés, e aqueles pés, especialmente, me fascinavam, porque, se o dono se
limitava a grunhidos e breves sorrisos, os pés, literalmente me diziam tudo.
Eles me olhavam de frente e falavam em libras para mim, eles se contorciam, se
abaixavam, se levantavam e giravam conforme o humor do dono.
Pernilongo primeiro me encaixou num grupo terapêutico. Eu
falava muito, mas muito pouco de mim mesma. E me divertia muito com aquela
fauna. Durou mais ou menos 2 anos, até que Pernilongo decidiu que era melhor me
ver particularmente. Não sei se eu exercia má influência sobre o grupo ou
vice-versa. Foi punk. Alí eu me sentia alguém espiando no buraco da fechadura,
vendo aquele imperdível desfile de sintomas, sem ser vista. Ficar sozinha com
ele estragou a brincadeira.
Foi bom enquanto durou. Quase todos ali eram universitários
como eu. Havia o Van Gogh, o artista frustrado. Os pais o colocaram lá na
esperança de que Pernilongo inoculasse um pouco de juízo na sua cachola. Tinham
só dois filhos. Sonhavam com um futuro respeitável para eles. Um ia ser médico,
o outro engenheiro ou advogado. Mas um dia , eis que Van Gogh anuncia que tinha
passado no vestibular... para uma Escola de Artes. Putz! O pai quase teve um
infarto. Nunca mais conversou com o filho. Não obstante, levava-o
religiosamente para a Escola, de carro. Sem dizer uma palavra. Alguém do grupo
uma vez perguntou: “E seu irmão? Correspondeu às expectativas?” E ele: “Meu
irmão é músico”. Até Pernilongo se divertiu. O sorriso foi contido, mas o pé se
esbaldou.
Havia a socialite linda de morrer, rica, família de sobrenome
respeitável. Estava noiva de um “bom partido”. O cara tinha um cargo político
invejável. E era uma dama. Fino e gentil. Os preparatórios para o casório iam
de vento em popa. Só tinha um detalhe: o cara era gay. Ela sabia que desse mato
não ia sair coelho nenhum. Mas era uma oportunidade única. Impensável romper
esse negócio promissor. Toda semana era a mesma lereia. A família também queria
que Pernilongo botasse algum senso na cachola da moça. Eu achava que ela devia
mandar o dito noivo catar coquinhos e ir soltar a franga em París. O mesmo que
o pé do Pernilongo achava. No final. Happy End. Não se casaram. Hoje, muitos
anos passados, vejo o ex-noivo dando entrevistas na televisão. Continua na
crista da onda e não foi a París soltar a franga. Soltou aqui mesmo na
terrinha. E vai bem.
Também havia a Bípede Emplumada. Alguns anos mais velha do
que eu, estava se formando em Sociologia. Não falava. Discursava. Uma diatribe
empolada a que todos ouviam num silêncio respeitoso. Ninguém entendia direito o
que seria “ouvir as bases que na atual conjuntura dos fatos sociológicos... e
blá blá blá” e o que isso tinha a ver
com nossos problemas intestinos. Eu ficava danada que o Pernilongo não
interrompesse aquela verborragia inútil. Já naquele tempo, eu sabia que esse
falso intelectualismo encobria o pega pra capar da sua vida. Clarissimo. O
apelido vem do fato de que, ela nunca diria honestamente, se a ocasião
aparecesse: “de grão em grão a galinha enche o papo” mas essa pérola: “de
pequenas em pequenas partículas farináceas, a bípede emplumada satura o seu esôfago”.
Uma pequena perversão minha.
Mas eu tenho uma dívida de gratidão com ela, devo dizer. Eu
já lia bastante de psicanálise, mas ainda não estudava formalmente. E certos
conceitos ainda eram meio obscuros para mim. Um dia, na saída, ela me alcançou
para um papo ligeiro. Estávamos na calçada em frente ao prédio quando
Pernilongo passou apressado. Ela o olhou se afastando. Seu rosto ganhou um
suavidade insuspeitada e ela murmurou: “como ele é lindo! Eu fico
encantada!” Olhei a figura. Alto,
esquelético, pés imensos, cabeça grande, metido num terno escuro. Parecia mais
um coveiro. Nesse momento em entendi claramente o conceito psicanalítico de
“transferência”.
Devo dizer que uma certa paz se apoderou de mim. No extremo
daquele corredor escuro aprendi que no fundo, no fundo, lá no tutano, a gente
não muda, mas ganha uma demão de tinta que fica legal. Torna a gente mais
suportável para os outros.
Maria Solange Amado Ladeira - 17/03/20
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