A inspiração, essa infiel







A inspiração, essa infiel.
Solange Amado

Tudo bem. É mesmo um paradoxo. Tá na cara que a gente escreve pra se organizar, porque sem as palavras, tudo fica uma zona só.  Palavra é que nem mãe que organiza as pulsões da criança. Às vezes a palavra olha pra gente com ternura, um cicio de amor e  mergulhamos de corpo e alma no leitinho quente que brota do seio materno. Às vezes,é um custo se ajeitar nas tetas das palavras e o leite não flui. Parece que o peito secou. A gente cai numa zona morta. Alguma coisa não deu liga . O bico do peito não deu encaixe. E o que produz o encaixe das palavras é a liga da inspiração. E quando a inspiração nos abandona, não adianta nenhuma transpiração. Súplicas não adiantam, desespero também não. Ameaças caem em ouvidos moucos. Melhor deixar a inspiração em paz. Ela tem o tempo dela. Vai ser uma mixórdia, mas você vai resistir. Ninguém morre por fazer um pouco de jejum, mesmo que seja contra a vontade e contra o vento. O fato é que não tem remédio. Ninguém é genial 24 horas por dia. Tenho lido montes pela vida afora e 80% dessa produção é meia boca. Vai daí que, sem culpas. Temos um álibi. A inspiração hoje não deu as caras. A gente vai ficar devendo. Sorry.
 Comigo é assim. Às vezes me enfezo, quero discutir a relação, fico brava, vontade de partir para a valentona. Sinto que me tungaram parte das ideias. Mas logo recolho a minha valentia. É pior. Aí  é que ela, a inspiração, a liga, não vai dar as caras mesmo. Esse relacionamento precisa de espaço, e paciência. Quem disse que eu tenho? É hora de entregar a criatividade pras almas.
Também não é negócio ficar em casa arrancando os cabelos e esperando que as inspiração caia do céu por descuido de S. Pedro.  S. Pedro tá se lixando pra nós. Mande suas ideias fazerem um “rendez vous” como quem não quer nada. Guimarães Rosa diria que ela (a inspiração) aparece é em horinhas de descuido. E você abre os braços, porque não adianta essa frescura de ficar ressentida, de fazer pirraça. Ela não entende essa linguagem.
Não sei se alguém sabe. Então vou contar: a inspiração é distímica e infiel por natureza e se você topou essa relação, hay que aguentar. Um dia ela espera você com um amor total e ardente, no outro, lhe dá as costas e finge não reconhecê-la. Pior. Bota-lhe um chifre bem grande na testa. Vai dormir com alguém, às vezes com sua melhor amiga. Não adianta, você nunca vai saber com que raio de humor ela vai aparecer hoje, Pode ser que não queira nem dar um beijo de boa noite, mas na manhã seguinte, pode chegar derretida e até levar café na cama.
Conselho de amiga: não ligue o foda-se quando ela refuga ou demora para aparecer. O importante é não entregar os pontos. Também não é preciso uma total vassalagem. Ela é matreira. Ponha um boné, pegue a enxada e vá cavando seu chão, se vai sair na China ou se vai descobrir petróleo, não importa. O objetivo é mostrar pra inspiração que quando ela voltar, se ela voltar com o ovo já desvirado, você está a postos. Meio caminho andado.
Nunca é fácil. Quando a inspiração negaceia, dá uma esnobada, a tentação é de mostrar que a gente não precisa dela. E é aí que mora o perigo, porque a gente precisa.
Numa relação comum, ninguém precisa aguentar o comportamento desparafusado do cônjuge.  Quanto mais rápido ele for plantar batatas melhor. Pra isso existe a lei Maria da Penha. Com a inspiração é diferente. A relação é de corno manso mesmo. Ela vai ditar os termos.
Não tenho o direito de me sentir enciumada quando a inspiração dorme com alguém e produz um filhotinho delicioso. Esse rebento-poema podia ser meu. Mas engulo o sapo. Ela tem suas preferências. O objeto do desejo nunca é o mesmo. Nem sempre ela quer me engravidar com alguma ideia importante. Foi caçar seu prazer em camas alheias, com alguém mais competente.
Ave Maria! Essa toada tá me cheirando a auto-ajuda.  Esse filhinho bastardo tá cheio de necessidades especiais. Mas não vou deixar que o fracasso me suba à cabeça. Amanhã, quem sabe!!



Maria Solange Amado Ladeira        -   24/03/20
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