Um escritor frustrado





Um escritor frustrado
Solange Amado
Meu nome é Nestor. Sou um jornalista fracassado e um escritor frustrado. Mesmo assim, as palavras continuam a ser meu instrumento de trabalho.Teimosia pura, já que é só procurar na internet e pronto!  Já tá tudo escrito. E tão medíocre quanto. Mas além de me chamar Nestor, eu sou masoquista. E um tanto histérico. Sempre pode piorar. Nada é o bastante. Sou um Sísifo que carrega palavras montanha acima. É claro. Não vou chegar nunca, nem é esse o objetivo. O objetivo da vida é não dar sossego. É isso.
O caso é que além de me chamar Nestor e ser um escritor medíocre, agora a vaca foi pro brejo de vez. Tô na maior bananosa: meu chefe me intimou a escrever um romance. Eu até tento, mas na página vinte,  já tô com vontade de matar meus personagens. Cansei deles. Essa intimidade me dá nos nervos. Eu durmo com eles, como, brigo, faço amor ou só escutamos música e tomamos um vinho no crepúsculo. De transgressão mesmo, só um eventual cigarrinho que passa de boca em boca, cuidando para que o vizinho não sinta o cheiro suspeito. Às vezes é agradável. Uma coceirinha de bicho de pé, que, no momento, parece mais um carrapato. E eu sofro.
Não sei se já confessei isso. Tenho um crime na consciência por não aceitar invasão de privacidade: matei a Filomena, a minha lagartixa, porque ela invadiu meu quarto durante a noite. Então, como aceitar personagens que não respeitam o seu lugar?
Acho que Ismael Silva, o compositor, pensava em mim quando compôs “Antonico”
                                “Ô Antonico
                                Vou lhe pedir um favor
                                Que só depende da sua boa vontade
                                É necessário uma viração pro Nestor
                                Que está vivendo em grande dificuldade”
Ismael que me perdoe, não toco nem cuíca, nem surdo, nem tamborim na Escola de Samba. Mas toco palavras. Acho que é o bastante.  E é muito bonito esse apelo dele: “faça por ele como se fosse por mim”.
Ele tem razão. Acho que todos os escritores frustrados  deveriam unir forças. Trocar personagens como se fossem figurinhas. E ideias. E palpitar no enredo. E fornecer dicas. E me tirar da bananosa.
Me chamo Nestor e me sinto grato ao Ismael Silva pela força. Tenho esperança de que meus colegas se apiedem de mim, mas também tenho medo. Os sofrimentos são muito particulares para que os outros possam meter o dedão.
Não sei vocês, mas eu e meus personagens sofremos inexoravelmente do que o filósofo Leandro Karnal chama de “o dilema do porco espinho”: se nos aproximamos somos espinhados, se nos afastamos sentimos frio.
Sei lá. Hoje à noite, vou abrir o jogo. Discutir a relação. Se não der, eu mato a lagartixa. E não vai adiantar nada a viração pro Nestor. Aproveitem agora.


Maria Solange Amado Ladeira         27/08/2019

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