O suicídio

V




O suicídio
Solange Amado
Ela era muito pequena quando tentou o suicídio. Comeu uma latinha inteira de pastilhas Valda. A mãe deixava comer no máximo duas. Dizia que, se não matasse engordava. Engordar não era uma opção. Ela era uma tripinha. E litros e mais litros de óleo de fígado de bacalhau nunca deram jeito. Então, restava a segunda opção: morrer. E ela foi nessa.
Na verdade, a intenção dessa morte não era bem morrer. O lance era mais de vingança. Contra a mãe e o pai. Questão de justiça. Quem entornou coca-cola nos processos na mesa do pai foi a irmã mais velha, que nunca fazia nada errado. Então, não adiantaram os protestos. Quem levou as chineladas na bunda foi ela.  A irmã até que se acusou nobremente, mas não adiantou. Tarde demais.
O pai não se abalou: “ela vai fazer mesmo qualquer besteira, então, já apanhou por conta”. A mãe só encolheu os ombros “quem tem fama, deita na cama”. A irmã escapou incólume. Daí o lance das pastilhas Valda.
Teve a ideia de noite, na hora de dormir. As pastilhas estavam na gaveta da cômoda.”Se não mata, engorda”. Vamos nessa! Comeu,deitou e morreu.
O corpo foi colocado em um caixãozinho branco coberto de flores que lhe coçavam o nariz. A mãe e o pai sofriam agarrados ao corpinho frágil, lamentando cada chinelada na bunda, cada castigo, cada proibição de ir à matinê de domingo. Ô glória!
Inundados de lágrimas, eles choravam abraçados. Bem feito! Nunca mais presentes no dia dos pais, festinha no colégio, dez com louvor na redação “Minhas férias”, e zero de aritmética nas contas de “vai um”. Agora, não adiantavam mais arrependimentos. “Aqui se faz aqui se paga”. A filhinha deles já era. Morreu com a bunda ardendo das chineladas dos pais perversos. Os mesmos que agora se debulhavam em lágrimas, profundamente arrependidos.
Ela até considerou abrir os olhos e gritar: “Primeiro de abril!”. Mas estava gostando daquele teatro em que era a atriz principal, o centro das atenções. E mais ainda, era agradável saber que naquela família, o chinelo ia se aposentar para sempre. Não haveriam mais proibições de matinê no domingo, com pipoca, sorvete, Rin-tin-tin e a Cavalaria Americana. E quando descobrisse um índio sioux escondido debaixo da cama no meio da noite, o pai e a mãe levariam a filhinha para dormir na cama deles. Nada de engolir o medo e levar bronca. A coisa ia virar o paraíso total. Morrer, afinal, era uma boa solução.
Mas o mundo não é perfeito, não é completo, não é justo. O suicídio funcionou por uma noite inteira. Deu uma arrumada legal na mixórdia da vida.
Mas então ela acordou. Baita azia. Excesso de pastilhas Valda. O chinelo continuou a cantar bonito. O capeta, com rabo e chifrinhos, continuou a sua missão de tentar criancinhas. A luz não se fez, a justiça nunca deu as caras. A única coisa na sua vida que se fez foi o verbo. Ou melhor, se refez, E se refaz. Às vezes até se desfaz. Ao invés de chineladas, palavras. Ao invés de pastilhas Valda, palavras.
Às vezes dá certo. Não se pode afirmar com garantia. Afinal, como já disse um correspondente de guerra, “sem sorte, é melhor nem sair de casa”. E as palavras sabem disso.








Maria Solange Amado Ladeira                     13/08/2019
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