Sonhos incorretos
Solange Amado
“Meu sonho é pilotar carros e ser dono da rua que nem o
Cebolinha. E o seu sonho, tia?”. Surpresa, a tia pega com as calças na mão,
tenta fazer um caminho de retorno aos seus quatro anos. Mas se perde na marcha.
Não é dona nem de si mesma, quanto mais da rua. Tá bem longe da Mafalda ou da
Mulher Maravilha. Mas não seria má ideia. A Raínha Elizabeth é dona de Londres
quase inteira e isso não a impediu de cair do cavalo várias vezes. A tia do
garoto vive caindo do cavalo. Pelo menos isso. Mas nunca possuiu nem mesmo um
pedacinho descascado de rua em Londres, nem no seu país varonil, cor de anil.
Ela até tentou pilotar o seu destino. Fracassou. A máquina
fugiu ao seu controle, desembestou vida afora e ela se viu num beco sem saída. Hoje só pilota seu
carrinho de supermercado. Ocasionalmente.
Com quatro anos, ela era dona, não só da rua, mas dos seus
sonhos. Não dependia da realidade. Sonhar não depende de nada. Sonhar tem vida
própria. É produção independente.
A memória já vai raleando, mas ela ainda se lembra
bem. Aos quatro anos ela sonhava em ser a mulher gorda do circo. Era o máximo
de protagonismo já visto na sua breve vida. De tirar o fôlego! A mulher gorda
surge no picadeiro, sob intensas luzes
coloridas, vestida de bailarina e... cúmulo de glamour! Montada em um elefante,
também vestido de bailarino, com saiote e tudo. Muito melhor do que uma reles
chegada de Papai Noel de helicóptero!
Vocês dirão que é um sonho simples, fácil de ser
realizado. Concordo. A tia bateu na trave. Virou a mulher gorda. Não
propriamente do circo, porque nos dias atuais, é politicamente incorreto os
circos abrigarem mulheres gordas e elefantes. Só por isso seu sonho ficou no
meio do caminho.
Aí veio a adolescência trazendo no bojo o colégio de
freiras. E ela pegou a ler a vida de Santa Tereza de Ávila. Sonhou ser santa.
Caçou até um jeito de ter experiências de êxtase. Foi um grande esforço. Mas os
seus êxtases nunca chegaram aos pés dos de Santa Tereza. Tinham muito pouco de
divino. Desistiu.
E se o pecador, não obstante a picada da dor, pode
sonhar, a tia vai em frente, mesmo sabendo que sonho que se torna realidade
deixa de ser sonho. Ainda bem, porque seus sonhos sempre foram chegados a um D.
Quixote e a realidade era mais próxima de um Sancho Pança.
De qualquer maneira, voltemos à pergunta do garoto.
Ela exige resposta, exige resultados: “Qual é o seu sonho?” Há décadas a tia não
pensava no assunto. Com o passar dos anos, desejos vão ficando descoloridos,
menos prementes. Nenhum cavalo arreado passou pela sua porta. E já se acostumou
a perder o trem. Qual seria o seu sonho?
Não tem mais beleza, fama ou riqueza. O Príncipe Encantado
já perdeu os cabelos, a energia e criou barriga. Mas sonho é sonho, e ela não
desiste. Coça a cabeça. Até que tem um sonho. Politicamente incorreto, mas é um
sonho.
Como dizer ao garotinho de quatro anos, que a essa
altura do campeonato, a única coisa que ela deseja, na real, no duro mesmo é
estar pegando o Jorge Clooney?
Maria Solange Amado Ladeira 03/092019
www.versiprosear.blogspot.com.br
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